Na terra dos animais lilases

Fábulas de João p. Cruz com bichos em vias de extinção

contra o preconceito e a discriminação



para o Rafael e para o Alexandre

(estes contos podem ser utilizados por terceiros, nomeadamente por escolas, como já aconteceu, porque promover a tolerância é um dever de cidadania, mas tenham pelo menos a cortesia de salvaguardar a autoria, obrigado)



O Elefante


Alguma coisa dizia ao leão que o elefante andava triste. O leão, que nem é bicho de pieguices, reparou que o elefante tornara, naquela manhã, a verter água pelos olhos. Não conhecia mais nenhuma criatura que deitasse água pelos olhos. O elefante era o único. E quando o elefante fazia isso, o leão, amigo de longa data, já sabia que o grande vizinho lilás da savana estava triste. Foi ter com ele, preocupado e disposto a animar o companheiro.

- Bom dia elefante! Então, estás de trombas?! Disse o leão, com um sorriso tão aberto que até deixava ver toda a grande dentadura afiada.

- Não teve piada, leão, não estou com disposição para brincadeiras, desculpa lá o mau humor.

«Algo de muito grave se terá passado…», pensou o leão com os seus botões, em cuidados com o ar doente do amigo.

– Pronto, está bem, não tem mal. Vamos só ficar aqui os dois a olhar para as nuvens da manhã… Hoje não tenho nada para fazer, já comi anteontem, posso ficar por aqui a mandriar, a olhar para o céu, a fazer-te companhia… Se quiseres a minha companhia, claro… Disse o leão com ar altivo e manhoso, deitando-se no capim alto e húmido da cacimba que caíra durante a noite, ao lado do elefante, que nem respondeu, tão pensativo e desconsolado estava.

Duas horas se passaram. E os dois amigos continuavam lado a lado, pachorrentos e de olhar perdido, estendidos na planície amarelada à sombra de um embondeiro de copa larga. Subitamente, o leão interrompe o silêncio e diz:

– Porque é que estas tão infeliz?

– Olha, já que perguntas, estou farto... Respondeu com um suspiro o elefante lilás melancólico.

– Sim, isso pode acontecer… A qualquer um! Eu às vezes também me farto. Ainda no outro dia encontrei a hiena, que também me disse que estava farta. Os bichos fartam-se, é normal… Estão sempre a fartar-se, por isto ou por aquilo ou por aqueloutro. Não é certamente caso para estares dessa maneira. Um animal até fica transtornado. Está um sol radioso, companheiro! Estás pálido… Mais tristeza e ficas cor-de-rosa… E depois quem é que gosta de um elefante cor-de-rosa?! Não há crianças na savana! Só as crianças é que gostam de elefantes coloridos!...

Tentou gracejar o leão bonacheirão.

– E quem é que gosta de um elefante lilás?

– Ora essa, sei lá, muita gente… Eu, por exemplo!

– Pois.

– Pois, o quê?

– És o único. Não tens mais exemplos. E eu não tenho mais nenhum amigo.

«Ah, sente-se só…», concluiu cabisbaixo o leão.

– Então e os outros elefantes? Também são lilases.

– Quais outros elefantes?

– Então?! Os outros bichos enormes de orelhas grandes e lilases como tu! Onde estão?

– Pois. Não estão em quase lado nenhum… Há quanto tempo é que não vês um elefante na savana? Para além de mim?

– Realmente é verdade. E é estranho. Pensando bem nisso, há anos que és o único. Ainda bem, és boa companhia. E muitos como tu davam cabo disto tudo. Não é por nada, é por serem grandes… Pisam tudo… Comem a erva toda, que dá muito jeito para caçar e…

A voz do leão ia-se sumindo na garganta ao olhar de lado, com ar terno, para o elefante lilás. O leão, que era esperto e já tinha vivido muitos anos para um leão, começou a ter uma pena imensa do amigo, porque percebeu que de facto há anos que o conhecia só, na vasta planície. Lembrava-se, por outro lado, que há muito tempo atrás, o seu amigo não estava só e que muitos elefantes lilases pisavam então a imensa planície. Aliás, nesse tempo longínquo, famílias numerosas e felizes de elefantes lilases percorriam com alegria toda aquela zona. Mas aos poucos, sem que o resto da bicharada se apercebesse, as trombas lilases desapareceram…

O leão, que, como já vimos, não é dado a sentimentalismos e tem o rei na barriga, não costuma pensar muito nos outros. Não é mau bicho, o leão, é um óptimo amigo do elefante, mas é altivo, distante e muitas vezes antipático, mesmo com os outros da sua espécie, com os quais também fazia questão de manter a distância. «Para manter o respeito», dizia. Com o elefante lilás era diferente, os seus humores afectavam o leão porque cresceram juntos naquela savana africana, tinham um passado longo de vizinhança, mas principalmente de amizade e respeito mútuo.

O leão, solitário por natureza e feitio, agora sentia-se também culpado por não se ter apercebido da crescente solidão do amigo, até porque se habituara aquele ar grave e pesado do elefante.

– Ó companheiro, onde é que estão os outros elefantes?

– Os que eu conheci já não existem. Quanto aos outros, não sei. Nunca saí daqui de ao pé de ti. Nem sei se existem mais.

– Isso é realmente triste. Disse o leão, solidário e cada vez mais curioso – E porque é que isso aconteceu?

– Porque somos lilases.

– Isso não me parece uma explicação razoável. Disse o leão com firmeza – Que diferença faz serem dessa cor e não de outra? A quem incomoda tal coisa?

– Nem todos pensam como tu, meu amigo. Há animais a quem não fazemos falta, e a quem não custa fazer-nos desaparecer. Respondeu o elefante lilás, muito sério.

– Isso continua a parecer-me muito estranho.

– Então, esses outros animais, como são mais poderosos, acham que podem usar-nos sem nos pedir autorização. E além disso são vaidosos.

– E o que é que isso tem a ver?

– Gostam de coisas feitas com pele de elefante lilás.

– Arghh, que nojo!... Isto é, que disparate… E matam-vos por causa disso? Que parvoíce. E nem sequer é para te comer? Disse o leão num gracejo sumido. Não, o amigo estava a desaparecer porque havia animais que não sabiam conviver com a diferença. O leão deu uma olhada ao corpanzil do elefante. Era de facto diferente de tudo o que ele conhecia. Ao leão não lhe fazia diferença, visto ter aprendido com os anos a conviver em harmonia com o gigante lilás. Mas aos outros, aos outros podia de facto parecer muito bizarro, aquele paquiderme colorido. E, soturno, afastou-se, deixando o amigo sozinho com as suas lágrimas.

Passaram-se seis dias. Sozinho, como sempre, o elefante lilás estendia pachorrento a longa e ágil tromba para as folhas mais verdes de uma árvore. Mastigava devagar, quando o olhar perdido se achou num grupo de animais, que ao longe se aproximavam na planície. «Que estranho, que grande ajuntamento», pensou, fingindo-se desinteressado. Continuou a comer. Ao aproximarem-se, os animais começaram a ganhar formas definidas, e o elefante percebeu. «Não posso crer!», pensou, «elefantes, elefantes lilases como eu! Montes deles!!!». E assim era. Era um grupo de, pelo menos, vinte ou trinta elefantes lilases, adultos, elefantas, bebés elefantes, todos lilases, a destacarem-se aos poucos, pela imponência e pela cor, na paisagem amarelada.

À frente do grupo marchava o leão, orgulhoso, de cabeça bem erguida e focinho bem-disposto. Mais perto, viu dezenas de outros animais, mais pequenos, de muitos


tamanhos e feitios, centenas, que seguiam atrás da manada de elefantes deliciosamente lilases. Incluindo dois macacos sentados no dorso do elefante maior.

– Bom dia, elefante!!! Exclamou o leão, quando a numerosa comitiva parou junto do espantado gigante.

– Bom dia, amigo leão. Bom dia a todos. Afinal sempre há mais como eu… O que é isto, leão?!

– Isto? Isto são elefantes lilases.

– Bem vejo! Mas de onde vêm? Como é que vieram aqui parar? Quem são? Porque estão aqui? Exclamou o elefante, atónito.

– São muitos anos na savana, meu caro… Gracejou o leão, piscando o olho. Estes como tu, grandes e lilases, são os que restam da tua espécie, para que se possam multiplicar de novo, e para que não voltes a sentir-te só. Deu-me uma trabalheira reuni-los a todos, aliás, andavam quase todos sozinhos e distantes uns dos outros, coitados. Como tu. Os outros, são todos os que encontrei pelo caminho, que ouviram a tua história, que, entretanto, se espalhou por todo o território, porque são uns linguarudos, os animais, como sabes… E todos vieram para mostrar que gostam de ti como és, que aceitam a tua diferença e que lhes farás muita falta se desapareceres, lilás.

– Não sei como te agradecer, companheiro leão.

– Não gosto de ver os meus amigos tristes. Entristece-me. Disse o leão, sussurrando para dentro da grande orelha do elefante lilás, para que os outros bichos não ouvissem e pensassem que este feroz felino, o implacável monarca da planície, tinha sentimentos…: E como não tenho mais nenhum amigo, senão tu, estava com medo de nunca mais ter alegria na minha vida, percebes? Gosto da tua companhia ao entardecer, da tua presença antiga no horizonte, dos teus conselhos… És importante para mim, meu amigo. Há sempre alguém a quem fazes falta.



O Lobo


- Como é que te chamas? Perguntou sem vergonha nem medo o pequeno pardal saltitante.

- E que tens tu a ver com isso? Respondeu o lobo rabugento.

- Eu tenho a ver com tudo e com tooooooodos os animais deste bosque. Disse o pardalito, enchendo o peito e alargando muito as asas enquanto dizia «toooooodos».

- Não estou para conversas, muito menos com pássaros curiosos. Ainda por cima minúsculos e irritantes… Replicou o lobo lilás com desdém, olhando ameaçador para o passarito, que tentava acompanhar o seu passo, pulando freneticamente no chão e agitando as asas com alegria. O lobo não estava com disposição para muita conversa. Aliás, o lobo nunca estava com disposição para conversas. O pardal é que era novo e ainda não conhecia o lobo. Ora, o lobo tem sete anos, o que é uma idade bastante respeitável, para um lobo.

Mas o pardalito teimoso não se deixou vencer pelo mau humor do colorido mas carrancudo companheiro de caminhada.

- Ora essa, porquê? Está um dia tão bonito! Óptimo para fazer amigos. Tu não queres ser meu amigo?

- Não. Retorquiu o lobo altivo. E se continuas a aborrecer-me dou-te uma dentada.

- Duvido que consigas. Disse o pardalito bem-disposto, voando com rapidez em volta do lobo lilás. Além do mais, não tenho medo de ti.

- Ahn!? Não sabes quem eu sou?!

- Sei.

- E não sabes que toda a gente tem medo dos lobos? Ou os teus pais não te ensinaram nada? Sai daqui, vá, xô…

- Vou se eu quiser. Já sei voar, vou para onde eu quiser e tu não me metes medo. Tu não és o dono do bosque! Quase gritou o pardal na sua voz de trinado, pousando no galho de um castanheiro e gracejando com inocência: Não queres brincar comigo?

O lobo finalmente parou e fitou o pássaro com ar intrigado.

- Ouve lá, ó pássaro, tu és muito estranho. Sabes quem eu sou e não tens medo de mim? Só de ouvir falar no meu nome fogem todos para as tocas, ou sobem às árvores apavorados, percebeste? Eu sou mau! Muito mau!! Sou uma fera pavorosa!!! Uma coisa monstruosa!!!! Rrrrrrrrrr!... Rosnou o lobo mostrando os terríveis dentes amarelados e aguçados.

Nada que impressionasse o pardal por aí além:

- Não acredito.

- Para além disso, não tenho tempo para perder contigo, tenho de caçar para a minha família. Ou pensas o quê?! Sou um lobo com responsabilidades, tenho uma loba e quatro lobinhos para alimentar, estão à minha espera para jantar. Por isso, se fizeres favor, vai brincar com os outros pássaros, que eu tenho mais que fazer. Disse o lobo, encolhendo os ombros resignado à impertinência daquela criança e apressando o passo.

-Mas afinal és mau ou não és mau?

O lobo percebeu então que não seria tarefa fácil livrar-se daquela companhia.

- Para dizer a verdade, nem por isso.

- Então porque é que fogem todos de ti?

- Infelizmente nem todos fogem, além dos pardais inoportunos, há muitos outros animais que nos perseguem, aos lobos lilases, para nos matar.

- Porquê? Interrogou o pardalito, que era do tamanho de uma orelha do lobo lilás, franzindo a testa curioso e voando da árvore para o chão, para próximo do companheiro peludo.

- Não sei, acho que foi uma fama que se espalhou… Agora, por causa disso, já quase não há lobos lilases como eu… Desabafou num suspiro desconsolado, deitando-se, enfim, junto ao pássaro. Olha, sabes que no fundo até sou bom tipo e não faço mal a ninguém. A minha loba de vez em quando até me chateia por eu ser tão pouco agressivo e por levar tão pouca comida para casa…

- Não sei… Há bocado pareceste-me bastante assustador. A sério. Se eu fosse outro tinha fugido a sete pés.

- Só queria era viver em paz com toda a gente. E que parassem de nos atormentar. Já estou farto desta reputação de bicho assassino. Nem consigo arranjar amigos. Os que tinha, outros lobos, já desapareceram quase todos… Disse o lobo desanimado.

- Eu posso ser teu amigo! Podes brincar comigo. E até te posso ajudar a caçar, para que a tua família possa crescer e ser mais forte, lá de cima do céu posso ver coisas que tu não consegues, posso ser muito útil! Vais ver, vamos ser uma equipa extraordinária! … Exclamou o pequeno pássaro alegre, saltando num repente para a cabeça do lobo lilás, que pela primeira vez em muitos anos esticou o focinho e cerrou os olhos num sorriso doce.

Aquela criatura minúscula que ao início tentara enxotar, com toda a sua genuinidade juvenil, com toda a generosidade que só as crianças sabem ter, além da

esperança, deu-lhe uma valiosa lição: A lição da aceitação. Da aceitação da diferença e do valor dos outros para além das aparências e do preconceito. E continuou a sorrir.



A Baleia


A baleia lilás era o bicho mais volumoso dos oceanos. Era tão grande, que quando vinha à tona de água encher os pulmões, mais parecia uma ilha a navegar. A baleia era, porém, também dos bichos mais tristes dos sete mares. O gigante gorduroso até tinha uma natureza bonacheirona e alegre, mas a sua vida não era nada fácil. Nem simpática. Para começar, os outros animais do mar, muito mais rápidos e elegantes, gozavam com ele a torto e a direito. O que já a levava a evitar o contacto com outras espécies. Não gostava particularmente dos golfinhos. Eram uns gozões… E como as baleias não viviam em cardumes como as sardinhas ou os bacalhaus, ou em grupos grandes, como as focas, acabavam por viver uma vida muito solitária.

Para piorar a situação, precisamente por causa da gordura (ironia das ironias para a baleia, logo ela que preferia mil vezes ser mais magra e ágil…), os pobres cetáceos eram também dos animais mais perseguidos nos oceanos, pelos homens e as suas montanhas de ferro flutuantes. Conclusão: eram, como tal, cada vez menos, as baleias lilases, caçadas sem piedade, marginalizadas, desprezadas, lentas e vulneráveis.

A baleia desta história era igualmente uma baleia solitária e pachorrenta. Não punha os olhos em outros da sua espécie há longos dias e naquele momento ia numa grande aflição.

- Olá, amiga baleia! Mas que pressa! Podemos apanhar boleia contigo? Já estamos atrasadas para uma consulta. Prometemos ao tubarão uma limpeza de pele às cinco e meia, e sei que vais para aqueles lados. Agarramo-nos aí ao pé da tua bocarra e prometo que não incomodamos.

Disse uma das rémoras, pequeno peixe especialista em boleias e em limpezas de pele, das poucas espécies que se davam bem com a baleia.

- Está bem, está bem, venham daí! Mas rápido, rápido, que não me posso demorar por aqui. Tenho de fugir, anda um barco atrás de mim.

O pequeno cardume de rémoras rapidamente se instalou na garupa da baleia, colando-se com as suas ventosas, às dezenas pelo dorso do grande mamífero marinho. Uma delas, mais afoita, perguntou:

- Então, mas por que foges tu afinal? Porque é que esse barco te quer mal?

- Dentro do barco vem gente que me quer capturar e matar. Sei porque já o fizeram com quase todos os meus amigos e família.

- Porquê?


Perguntou o peixinho horrorizado (convém explicar neste ponto que as rémoras, por serem uma espécie tão pequena e discreta, não eram perseguidas pelos pescadores, dai não entenderem o perigo).

- Porque sou grande e gorda! Para me comer, para me tirar toda esta gordura, que me protege das águas frias, para me cortar aos bocados, pela minha pele lilás, porque sou diferente, sei lá…

Tentava explicar a baleia com a voz embargada pela respiração ofegante, já cansada de tanto fugir, acelerando ainda mais pelas águas azuis em direcção a um refúgio, talvez algum desfiladeiro profundo, onde os sonares do barco não a pudessem detectar.

- Mas isso é uma crueldade!

Disseram os peixinhos em coro, horrorizados. Sempre em grande velocidade, em cardume à volta da baleia, os peixinhos começaram a discutir entre eles a situação desesperada da sua amiga gigante. Não era justo ser perseguida por ser “gorda” e diferente. “Não é gorda! É apenas maior do que nós!”, reclamou de pronto uma das rémoras, no que todas concordaram. Concordaram ainda ajudar a baleia no que pudessem. E o que podiam era muito, apesar das aparências frágeis e minúsculas, pois detinham a principal arma dos mais pequenos: O engenho! Ainda estiveram algum tempo a arquitetar melhor um plano, comunicando umas com as outras, como só um cardume de peixes consegue fazer, pensando e agindo como se fossem um só. Então, uma das mais velhas foi, radiante, junto do ouvido da baleia lilás e comunicou-lhe a sua proposta:

- Amiga baleia, tens sido boa connosco, as nossas duas espécies sempre se ajudaram uma à outra e sentimos o teu medo e a tua dor como se fosses dos nossos. Por isso, queremos ajudar-te.

- Ó meu querido amigo, mas como é que vocês, tão pequeninos, podem fazer alguma coisa? O navio é de um tamanho monstruoso! Se acham que eu sou grande… Tenho de fugir, não há outra solução, mas obrigado, na mesma, fico sensibilizada e não esquecerei a atitude. Obrigado.

- Não, ouve-me, há solução! Somos pequenas mas sabemos pensar, somos muitas e temos a força da união! Não subestimes os outros pela sua aparência. Ouve só a nossa ideia: Se bem percebemos, o tal navio que te quer caçar sabe onde tu vais porque te segue com o sonar, não é?

- Sim.


- Ora, como alguns de nós sabemos, o sonar é um aparelho que envia ultra-sons, que fazem ricochete em todos os objectos do seu raio de acção, devolvendo ao navio a localização dos mesmos, não é assim?

- Bem, não sei muito bem, mas penso que seja algo parecido… Mas vocês são mesmo muito sábias, estou espantado.

- Era como te dizia, minha amiga: “não julgues um livro pela sua capa”. Ora, a nossa ideia é que o sonar pode ser enganado.

- Enganado?! Como assim?

- Exatamente. É assim: Como já reparaste, somos muitos neste cardume, felizmente ninguém nos persegue e a nossa espécie tem conseguido multiplicar-se com abundância, ao contrário da tua espécie, lamentavelmente. E só neste cardume temos peixes suficientes para fazer pelo menos três baleias tão grandes como tu!

- Como? Não estou a perceber…

- Nunca viste nadar um cardume?

- Já. E então?

- Nunca reparaste como nadamos sempre muito juntinhos e sincronizados? Tanto, que às vezes parecemos uma única criatura?

- Sim, por acaso já tinha reparado nisso. E acho que já sei onde é que queres chegar…

- Pois! E nunca te perguntaste porque é que fazemos isso?

- Bem…

- É por várias razões, mas uma delas é precisamente para enganar predadores, que já pensam duas vezes em atacar uma massa tão grande em movimento. Nem sempre resulta, mas às vezes funciona. E o que vamos fazer, no teu caso, é enganar o sonar do barco. Vamos confundi-lo. Juntamo-nos em três cardumes, vamos cada um para seu lado, um para norte, outro para sul e por ai adiante e ele, contigo, fica com quatro, contigo, coisas para perseguir. Com sorte, vai seguir atrás de um dos nossos cardumes em forma de baleia. E quando já estiver suficientemente longe, dispersamo-nos e desaparecemos do sonar. O que achas?

A baleia ainda ficou uns instantes meio incrédula, mas acabou por ficar assombrada com a astúcia daquelas “amostras de peixe”…

- Olha que não é nada mal pensado. Talvez resulte, se me quiserem então tentar ajudar, vamos a isso.


- Não tem problema nenhum. O importante é salvar-te a vida. Além disso, precisamos todos uns dos outros. É como a relação entre as nossas duas espécies: nós limpamos a vossa pele, a vossa pele dá-nos alimento, enfim, o ciclo da vida também depende da cooperação. E da amizade!

- Fico muito sensibilizada com o vosso gesto. Vamos então e (a) isso, quando estiverem preparadas.

O facto é que já não tinham muito tempo. O perigo já espreitava ameaçador. Cada vez mais assustada, a baleia já conseguia até ver a alta proa do baleeiro, a umas poucas centenas de metros atrás de si…

- Um, dois, três. Agora!

À ordem de um dos peixinhos, o grande cardume formou três pequenos cardumes, cada um reproduzindo a forma quase exacta de uma baleia e nadando cada um para o seu lado cardeal. A baleia lilás, essa, virou para Norte, enquanto um dos pequenos cardumes continuou em frente, fingindo ser o grande cetáceo.

Quase foi visível uma hesitação da parte do castelo de aço flutuante, que pareceu abrandar sobre as águas até perceber qual dos quatro pontos no sonar seguir, mas o plano acabou por resultar. O navio seguiu a sua rota em frente, perseguindo o cardume que tomou o lugar da baleia. Uns quilómetros mais à frente, o grupo separou-se em centenas de peixinhos e o sinal do sonar simplesmente desapareceu do ecrã, deixando os marinheiros de boca aberta com fenómeno. E assim se salvou a nossa amiga baleia.



Águia Real


Podia fazer aquele voo planado milhares de vezes, mas nunca deixava de ficar espantada pela majestosa e arrebatadora paisagem montanhosa lá em baixo. Visto daquela altura, o nordeste português, território a que os homens chamam Trás-os-Montes, era muito mais belo.

De cima, a visão panorâmica transformava a geografia agreste e dura para as criaturas terrestres, num maravilhoso cenário de montes e vales cor de esmeralda a perder de vista. E a poderosa e imponente águia-real lilás nunca se cansava de sobrevoar aqueles céus, aquele horizonte limpo que era tão familiar à sua espécie há tantas gerações, sobretudo desde que as águias-reais ficaram confinadas aquela zona.

Aquela paisagem indómita, de facto, era uma espécie de último reduto da realeza dos ares portugueses.

Se voasse noutra direcção, a águia tinha também uma perfeita e preocupante visão de uma das suas grandes ameaças: os homens, as suas cidades e as suas construções. E enquanto planava lá no alto com as suas magníficas asas enormes, ao ver os prédios, o cimento, as fábricas, as estradas, as pontes, ao ver tudo isso a crescer ao longo das encostas e nas planícies, onde costumavam viver as suas presas, a sua fonte de alimentos, sobretudo pequenos roedores (ratos ou coelhos) e répteis, lembrava-se também dos humanos, das suas armas e dos seus venenos.

E, apesar da beleza ainda inexplorada de parte da paisagem, ao olhar para a outra parte da cor do cimento e do alcatrão que avançava, imparável, a imponente águia lilás sofria. Sofria porque também graças a tudo isso, eram cada vez menos as águias-reais lilases. Por isso, como todos os animais lilases, as águias-reais eram animais muito solitários.

A nossa amiga vivia, naquela altura, sozinha com a sua ninhada de duas pequenas águias, sem qualquer companhia da sua espécie nas vizinhanças, por muitos e muitos quilómetros em redor. O seu companheiro desaparecera sem deixar rasto, provavelmente abatido por um caçador humano sem escrúpulos (as águias lilases, por serem raras, eram muito procuradas pelos homens que gostavam de animais mortos), electrocutado nos postes de alta tensão que nasciam como cogumelos ou envenenado e ela preocupava-se principalmente com o futuro das suas crias. Que iria ser delas, com a comida a escassear e os vastos espaços livres cada vez menos vastos e livres?

Andava numa destas tardes absorta nestes pensamentos, quando lhe surgiu ao caminho outra criatura majestosa dos ares, uma cegonha branca que lhe parecia familiar.


- Olá amiga águia! Como vais? Não te lembras de mim? Mas que ar tão cabisbaixo… Anima-te, chegou a Primavera a estas paragens, está um tempo radioso!

Disse a cegonha, planando com graciosidade ao lado da águia lilás, que finalmente reconhecera aquela voz nasalada (como se fosse uma pessoa fanhosa). Todos os anos, de há quatro anos aquela parte, a cegonha passava por aquela zona quando o tempo começava ali a aquecer, a caminho do seu local preferido no Verão, num vale não muito longe dali.

- Olá cegonha, sim, claro que me lembro de ti, fico feliz por te ver novamente, por ver alguém conhecido. Aliás, por ver alguém! Isto está cada vez mais solitário, amiga cegonha e temo pelo que aí vem, com as minhas crias a soltarem asas em breve…

- Pois, realmente és a primeira águia que vejo desde há algum tempo, o ano passado vi mais por aí a voar. O que é que está a acontecer?

- Todas se foram, já só resto eu e as minhas crias. Umas partem para outras paragens, outras são mortas, enfim, uma tristeza. O meu companheiro saiu numa destas manhãs para caçar e não regressou. Penso nestas coisas e fico deprimida, não ligues. Então e tu, como vais? Sempre a viajar, a ver coisas novas, como te invejo, por vezes, minha amiga...

As duas grandes aves, entretanto, tinham pousado num ramo forte de um frondoso castanheiro. No cume das montanhas a Oeste, o Sol começava a pôr-se, transformando o horizonte numa bela tela celeste sem nuvens e pintada em tons de vermelho e laranja. A cegonha, animal curioso e sensível às coisas bonitas, nunca se cansava daquele cenário natural encantador, que contemplava de pescoço erguido e olhos semicerrados, como que para melhor absorver nas suas penas a beleza granítica daquela paisagem. A seu lado, no entanto, a águia-real lilás olhava para o chão cabisbaixa e alheia à beleza em seu redor.

- Magnífico! Exclamou a cegonha, estendendo as longas asas.

- Pois é. Sussurrou a águia, sem grande convicção.

Continuaram as duas pensativas e, passados uns minutos, a cegonha disse:

- Olha, estive a refletir no teu assunto. E acho que tenho uma solução.

A águia olhou espantada para a amiga e achou que não tinha nada a perder se ouvisse as ideias da cegonha. Sabia que era uma das aves mais sensatas do reino dos pássaros (as aves mais viajadas costumam ser assim, mais sábias) e nunca se arrependera de ouvir as suas histórias.


- Então diz lá.

- É assim. Estamos na Primavera nestas paragens, como sabes estou a caminho de um dos meus sítios preferidos para passar a época quente, mais lá para Norte, os homens chamam-lhe Galiza, é outro país, mas isso para nos não tem interesse nenhum para nós. Enfim, daqui a uns meses, no Outono, estarei de regresso a Sul. Nessa altura, as tuas crias já terão resistência para voar longas distâncias e seja como for, posso sempre vir um pouco mais cedo, para podermos fazer a grande viagem por etapas.

A águia ouvia atentamente e já começava a adivinhar a proposta da amiga cegonha. O primeiro sentimento foi de preocupação, de rejeitar aquela ideia que conduziria a sua família ao desconhecido. Mas resolveu continuar a ouvir sem interromper:

- Então, é assim: normalmente, quando rumo a Sul, vou para uma zona a que os seres humanos chamam a cordilheira do Atlas, no Norte de África. É uma grande cadeia montanhosa, com florestas e vales férteis, onde a civilização ainda não chegou e com um clima estupendo. É por lá que ando, quando vocês aqui se recolhem dos rigores do Inverno transmontano. E tenho a certeza que seria o local ideal para a tua família, - ou para outras águias lilases que ainda conheças - se instalar e perpetuar a tua espécie. Em Setembro, passo por aqui novamente e guio-vos até lá. Só tens de manter a tua criação viva e forte para poder fazer a longa viagem. São quase mil quilómetros. E lá ainda encontras vastas zonas desérticas e selvagens, não há estradas, não há cidades, não há fábricas, não há caçadores, nem sequer há poluição.

- Não sei… Não é que tenha medo, bem sabes que nós as águias-lilases somos conhecidas pela nossa bravura, mas a minha família já aqui está há tantas gerações…

- Pois, estão aqui há muito tempo, mas pelo que vejo, não tarda nada e não haverá gerações futuras para contar a história... Além disso, não é bom agarrarmo-nos dessa maneira ao passado... Abre as asas e abre os teus horizontes, dá um futuro às tuas crias!

- Tens razão, mas custa-me abandonar este sítio, tão bonito e familiar. E depois é uma viagem cheia de riscos para os pequenos…

- Os pequenos já serão grandes daqui a cinco ou seis meses, aguentam bem! Além disso, a viagem é longa, mas não é assim tão difícil, fazemos muitas paragens pelo caminho, vais ver que não custa. Deixa de ser sempre tão séria e preocupada! O Sul também te fará bem nesse aspeto, vais ver que ficas logo mais descontraída e menos sisuda.


A águia lilás esboçou um sorriso, inspirou fundo, ergueu o pescoço e contemplou as encostas rochosas e inóspitas, de um encanto agreste e poderoso Por um lado, a proposta da cegonha - que já decidira aceitar, afinal, era a única solução racional que lhe ocorria - trouxera-lhe a alegria da esperança; mas, por outro, não conseguia deixar de sentir uma profunda melancolia. Era como se aquela paisagem, de que já se começava a despedir no seu coração, fizesse parte dela, fizesse parte de uma antiga linhagem genética.

Vieram-lhe então à mente as palavras de um grande escritor humano, outro filho de Trás-os-Montes de seu nome Miguel Torga, palavras que ouvira da sua mãe águia nas longas noites de Inverno, no calor do ninho. «Terra-Quente e Terra-Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas. Nos intervalos, apertados entre os rios de água cristalina, cantantes, a matar a sede de tanta angústia. E de quando em quando, oásis da inquietação que fez tais rugas geológicas, um vale imenso, dum húmus puro, onde a vista descansa da agressão das penedias. Mas novamente o granito protesta. Novamente nos acorda para a força medular de tudo. E são outra vez serras, até perder de vista.».

- Está bem cegonha, és uma boa amiga e aceito o teu desafio. Será então para Sul. Entretanto, enquanto fazes a tua migração e não regressas, tenho muito trabalho pela frente, as minhas aguiazinhas têm de ficar fortes para a grande viagem.

- Fantástico! Combinado. Daqui a três meses, mais ou menos, voltarei a passar por aqui. E nessa altura partimos em grupo. Até breve minha amiga, cuida bem da tua criação!

A cegonha abriu as asas imponentes e levantou voo daquela forma um pouco trôpega que é típica das cegonhas. A águia seguiu para o ninho, não havia tempo a perder, havia que acelerar a aprendizagem dos filhos, tinha que os treinar bem para a travessia que se aproximava, tinha de redobrar os esforços para conseguir mais alimento. E foi assim. Nas semanas seguintes, a grande ave de rapina quase não teve descanso, procurando presas cada vez mais longe e instruindo as crias nas artes do voo e da caça, a defenderem-se dos perigos da natureza e da civilização e das armadilhas dos homens. E assim cresceram, fortes e espertos. E quando a cegonha voltou da sua estadia no Norte, encontrou dois magníficos juvenis, mais pequenos do que a mãe mas certamente prontos para fazer a viagem por etapas.

- Amiga águia, tenho de dar-te os parabéns, fizeste um excelente trabalho. Ficamos ainda esta noite, faz-me bem descansar as asas por umas horas e logo pelo raiar do dia partimos. Não há tempo a perder, os pequenos ainda não conseguem fazer grandes distâncias, a viagem vai demorar mais do que o habitual.

A águia lilás concordou e informou as crias para se prepararem, que o grande dia chegara. Nessa noite não pregou olho e ficou de pé, num penedo junto ao ninho altaneiro, observando, cheirando e sentindo aquela terra, aquele ar, pela última vez. Mal o sol começou a espreitar no horizonte, as quatro grandes aves descolaram para o futuro. Sobrevoaram as montes verdejantes das Beiras, as planícies amarelas do Alentejo, um pedaço de oceano azul e chegaram sãos e salvos ao destino africano. Até chegarem, finalmente, ao seu destino. Vastas regiões, de montanha e planície, intocadas pelo ser humano, onde a família de águias lilases prosperou por gerações e gerações, na companhia de outras águias lilases que ali iam encontrando refúgio, fugindo de uma Europa cada vez mais hostil à vida selvagem.