Em Outubro de 1938, dois anos depois de receber os Jogos Olímpicos mais espetaculares da história moderna, ou assim acreditavam os alemães sem se desviar muito da verdade, Berlim era uma cidade frenética e alegre, quase eufórica. Depois do "milagre alemão" dos anos 30, o novo regime ganhara os corações e as mentes e com ele um novo élan. A auto-comiseração nacional que se seguiu aos anos de estilhaço da desastrosa I Guerra eram passado quase longínquo e a cidade ressurgia aos olhos do mundo como uma metrópole vanguardista, próspera, laboriosa e altiva: a capital do Reich dos Mil Anos. A Alemanha era nesta altura um pequeno proto-império continental, que se estendia para sul, à Áustria, festivamente anexada em Março desse ano; para leste à região dos Sudetas, um pedaço de cerca de trinta mil quilómetros de Checoslováquia ocupado pelo exército alemão no primeiro dia desse mesmo mês de Outubro - e tal como aconteceu na Áustria, em clima de grande júbilo e com a tropa recebida nas ruas com flores e cânticos, visto ser uma zona habitada sobretudo por população germânica separada da mãe-.pátria. Em Março de 1936 a Alemanha estendera os músculos para Oeste, (re)ocupando a Renânia e outras áreas ao longo do Reno, nas mãos dos franceses desde a . 

O tratado de Versailles, em outubro de 1938, quando esta história começa, era já papel de embrulho para os alemães, que punham em marcha o novo desígnio patriótico do povo germânico: a construção de um lebensraum, um espaço vital, onde os arianos pudessem dar azo à sua grandeza e reocupar o seu lugar glorioso na história.

Isto perante a temerosa anuência da comunidade das democracias europeias, algumas velhos impérios coloniais impotentes ou incompetentes para lidar com o renascimento alemão. Todos seguindo a política de appeasement, de apaziguamento, encabeçada pelo ministro britânico Chamberlain, um dos homens mais equivocados da história do velho continente; além, claro, da cumplicidade, quando não aplauso, de governos autoritários como a Itália ou o Japão, e em breve a Espanha de Franco, que ainda viam no peculiar nacional-socialismo teutónico um modelo exemplar de eficácia moral, social moral e económica. E, em breve, militar. E mesmo sendo o comunismo (a par com o judaísmo) um dos ódios de estimação do novo programa patriótico alemão, até o imperador soviético José Estaline nutria pelo chanceler Nazi uma espécie de admiração, pela ordem e pelo progresso coletivo que conseguia imprimir ao país. Os bons espíritos,como se costuma dizer, encontram-se e os dois ditadores acabaram por assinar, em agosto de 1939, um pacto de não agressão, em que aproveitaram para dividir entre si a Europa do Leste.

Mas isso já é futuro. O mais importante agora e aqui é que de uma forma ou de outra, dos fascismos europeus às democracias liberais anglo-saxónicas ou francófonas, da ditadura dos sovietes às monarquias absolutas asiáticas, todos viravam os olhos para Berlim com admiração ou com temor. Ainda não com horror. Mas a cidade, de uma forma ou de outra, retomara o seu protagonismo histórico no centro do continente e, logo, no centro do mundo. A auto-estima coletiva dos berlinenses andava em alta. Vinte anos depois de uma rendição humilhante, o povo alemão reconquistara a alegria de viver e a cidade regressara ao convívio das grandes urbes do seu tempo, pináculos do progresso humano como Nova Iorque, Londres ou Paris. O seu porte monumental voltara a impressionar, as avenidas largas e as decorações públicas exaltantes voltaram a evocar com orgulho as efígies de Carlos Magno, Bismarck ou, acima de todos no panteão ideológico do III Reich: Frederico O Grande, o famoso rei prussiano do século XVIII que servia de modelo ao regime. Entre outros líderes de impérios germânicos mais ou menos antigos, quanto mais antigo melhor. O que era verdadeiramente omnipresente, no entanto, era a agressiva iconografia Nazi e o culto fanático ao fuhrer Adolf Hitler, o Messias ariano alegadamente responsável, sozinho, contra tudo e todos, pelo milagre já referido, um misto de obra pública massiva (símbolo maior: as auto-estradas) e de revitalização do complexo industrial militar. O povo, recuperada a prosperidade e o sentido de destino singular, respondia com euforia patriótica. Entre a Wilhelmstraße e a Voßstraße, milhares de operários afadigavam-se por turnos na conclusão do colossal e austero edifício da nova Chancelaria, testemunho sólido do casamento estético-ideológico entre o arquiteto Albert Speer e o regime Nacional Socialista, uma rigorosa montanha de pedra e ângulos retos cuja sombra esmagava a antiga sede do governo ali ao lado, cuja elegância ofendia a bruta sensibilidade dos ideólogos nazis.

Karl Stupmeier era por esses dias um berlinense regra geral pouco ou nada grandioso e quase sempre avesso a exaltações. Aos 43 anos era um homem sério e o que esperava da vida era basicamente um quotidiano tranquilo, ao ritmo pausado e rigoroso dos números e da leitura dos clássicos. Criatura atormentada, sisuda e sistemática, perdera, talvez irremediavelmente, o fulgor com uma infância soturna e uma viuvez precoce. A jovem mulher, Herta, morrera grávida, pouco tempo depois do matrimónio, vítima do grande surto de gripe espanhola de 1918, que só na Alemanha dizimou mais de duzentas e cinquenta mil pessoas, tendo espalhado a morte aos milhões um pouco por todo o mundo. Uma espécie de cereja macabra em cima do bolo que foi a tragédia da Grande Guerra. Karl, que já nessa altura não era um rapaz propriamente alegre, deixou de rir na ocasião funesta e vinte anos depois permanecia um solitário, um indivíduo baço de um formalismo quase fanático.

Vivia num apartamento confortável na rua Kolberger, próximo do Humboldthain Park, parque afamado pelas suas roseiras, flores a que Karl raramente prestava verdadeira atenção, não obstante gostar muito de caminhar nas veredas de terra batida. Preferia a natureza silvestre e acidentada dos montes e dos vales onde crescera e a que regressava aos fins de semana, era o seu escape ao mundo dos outros, na montanha não tinha que estar rodeado de pessoas, as pessoas regra geral cansavam-no, provocava-lhe ansiedade, da mesma forma que o trânsito da grande cidade lhe causava tonturas; achava a natureza mais limpa, previsível e honesta, com regras mais simples, por isso, além de um certo ar puro, apreciava no parque a tranquilidade e o sentido de harmonia social que antevia nas amas a empurrar os carrinhos de bebé, nos casais maduros em trajes solenes, nos jovens apaixonados, nas famílias em passeio, nos jardineiros e cantoneiros no seu labor discreto e eficaz, na relva aparada à escovinha. Com os infortúnios da vida aprendera, enfim, a apreciar as delícias de um universo ordenado e sem surpresas. Nos bosques apreciava a seleção natural e na homogeneidade étnico-paisagística dos parques de Berlim admirava a seleção social. 

Karl era um quadro público com moderada importância numa certa secção de uma certa divisão do Reichsinnenministerium, o Ministério do Interior, ministério esse que se encarregava sobretudo da nazificação do aparelho estatal alemão e do regular cumprimento das doutrinas nacional-socialistas na sociedade. A posição de Karl na burocracia não era alheia ao facto de ser militante do partido Nazi, não se limitava a simpatizar com as políticas, era alguém que nutria um genuíno entusiasmo pelo Fuhrer e pelo ideário nacional-socialista, sendo de resto das poucas coisas na vida que ainda lhe aqueciam o sangue nas veias. Atrás de um líder forte, sentia-se forte. Mesmo assim, ao fim do dia, era sobretudo um tímido técnico de secretária, um funcionário enterrado em papéis num departamento que tratava de contabilidade e logística. Isto é, apesar do fervor militante que extravasava em comícios e outras grandes ocasiões políticas galvanizantes, Karl não passava de mais um parafuso anónimo na engrenagem formal que suportava a Gleichschaltung, o processo doutrinário em curso na Alemanha no sentido do alemão supremo, essa criatura mítica e irresistível. Não era um exaltado, não era brigão ou quotidianamente violento, embora não enjeitasse a violência como recurso tal como via na natureza, mas era essencialmente um patriota e um conservador com uma causa. E um homem, como todos os homens, com a sua faceta odiosa, nem sempre reprimida. Não era feito, porém, da mesma massa dos fanáticos que saiam à rua em turbas destruídoras. Era demasiado educado para isso e não participava em extremismos, ainda que pudesse ver neles alguma importância instrumental. Pode parecer paradoxal a certas consciências mais refinadas que não conheçam bem Frederico O Grande, mas Karl considerava-se um humanista, herdeiro do iluminismo e da tradição racionalista europeia, e alguém que, em determinadas circunstâncias, avalizava a acção radical em nome do pragmatismo, da atenção a um bem maior, ou em nome do sentido quase religioso de dever patriótico. A nação era a nova religião de estado. A evidente contradição entre o totalitarismo nacional-socialista e os ideais humanistas resolvia-a fazendo profissão de fé na superioridade da cultura germânica, pináculo civilizacional que conduzia à paz e ao progresso, removendo do caminho da grandeza o obscurantismo judaico-marxista que contaminava o mundo. De uma forma ou de outra, como a generalidade dos seus compatriotas, edificou a sua desculpa e colaborava convictamente no sistema.

Seja como for, sem propriamente irradiar carisma ou simpatia natural, Karl era demasiado desprovido de ambição para cargos de responsabilidade pública. Ainda assim, era um parafuso com alguma relevância naquele sub-sector do mecanismo estatal. Guarda-livros por formação, trabalhava numa estrutura especial criada em 1933 por Wilhelm Frick, a quem nesse mesmo ano fora atribuída a pasta governamental do Interior. Cabia-lhe, a Karl, chefiar a secção de planeamento financeiro e contabilidade do Departamento de Operações Culturais Estratégicas (DOCE). A secção era uma equipa de três, contando com Karl, ao serviço basicamente dos entusiasmos esotéricos e para-religiosos da elite do Reich e que funcionava sob a dependência direta do gabinete do ministro Frick, para algum desgosto de Heinrich Himmler, ex-industrial das galinhas e homem forte das SS, igualmente empenhado em questões mitológicas e simbólicas, que mantinha uma rivalidade mais ou menos discreta com Frick. Os líderes nacional-socialistas alemães, de resto, eram mestres refinados no domínio do simbolismo e da propaganda. Ainda que algumas luminárias do partido levassem tudo aquilo muito literalmente a sério, para a maioria não era religião, não era sequer mistério, era poder. Era principalmente uma questão de legitimação, de sentido de missão transcendente. E as atividades do DOCE, enfim, desenvolviam-se em torno desse imperativo existencial do regime.

Ao lado do tosco e fanático Himmler, Wilhelm Frick era um intelectual, um peso-pesado do aparelho, fora um dos fundadores do partido Nazi e era um histórico do núcleo duro do Fuhrer, com quem participou no fracassado Putsch de Munique, uma desorganizadissima tentativa de sublevação em 1924, e com quem foi preso na devida sequência. Quinze anos depois, era o poderoso Frick quem tutelava, entre outras coisas chave, os mais diversos projetos bizarros do regime, empreitadas vagamente misteriosas muito da predileção do próprio Adolf Hitler e da sua corte. O Fuhrer, de resto, dava-lhes ele próprio também a maior atenção, tendo semeado no aparelho de Estado vários gabinetes, grupos de reflexão e pesquisa e organizações mais ou menos secretas e estranhas como a Ahnenerbe, que funcionava no seio das próprias Waffen SS e perseguia questões como a Atlântida, a terra oca, o arianismo ou o santo Graal. Tudo pela confirmação divina e antiga do Reich, do superior povo germânico.

E era precisamente o gabinete de Karl Stupmeier que processava o expediente logístico para alguns desses empreendimentos mais ou menos místicos e mais ou menos sigilosos - alguns eram até bastante propagandeados.

Antes de se transformar num funcionário rigoroso - e depois da morte da mulher e do filho por-nascer - Karl passou por uma fase terrível na sua vida, que se prolongou por cerca de quatro anos de errância alcoólica e semi-indigente. À tragédia familiar veio juntar-se, pouco depois, uma situação de desemprego prolongado, facto frequente na Alemanha após a I Grande Guerra, nação humilhada, destruída e mergulhada num grave estado de choque económico e anímico. O percurso descendente de Kal mudou, no entanto, quando conheceu Dieter, numa noite de estupor alcoólico à porta de uma cervejaria em zona mal afamada da cidade. O enérgico Dieter Sobel era fundador do recém-criado núcleo berlinense do ainda obscuro Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, mais conhecido por partido Nazi. Por essa altura, em finais de 1922, o irrequieto austríaco Adolf Hitler era já líder da organização, que se expandia rapidamente por toda a Alemanha a partir sobretudo de Munique.


Dieter andava então em «patrulha de sensibilização popular», como chamava às incursões de recrutamento de mendigos, pequenos vigaristas e bêbados pelas tascas e vielas, população constituída regra geral por veteranos física, moral e mentalmente estropiados da guerra, a fina flor do lumpen proletariat urbano, massa que, segundo o germaníssimo Karl Marx, havia sido também a base de poder de Bonaparte cem anos antes na França. Diga-se em nome do rigor que esse não era bem o caso de Karl Stupmeier, jovem acabrunhado de fraco físico e forte talento para contas e planeamento logístico, que era até uma espécie de pequeno burguês em crise. Desde logo não vivia propriamente na rua, não era um completo miserável, continuou a residir no apartamento dos pais após a morte destes e não só tinha direito a uma pequena pensão enquanto veterano como também usufruía de uma remuneração - modesta, é certo - proveniente de uma pequena quinta também recebida por herança e entregue a rendeiros, cerca de dois hectares agrícolas atravessados por um riacho, nas planícies de Brandemburgo, alguns quilómetros a oeste da vila de Juterbog. As suas mazelas, portanto, eram outras e a sua condição material não era assim tão débil. Não deixava de ser, ainda assim, um alvo fácil para a demagogia nazi, que além disso oferecia alívio para a  solidão (talvez o que menos o atormentava) e para a falta de sentido. Quando não se vislumbram saídas, qualquer atalho é uma luz.

Em 1922, como tal, Karl encontrava-se num estado lastimável, quando Dieter deu com ele desalinhado e sentado no passeio. Deu-lhe um folheto, ajudou-o a levantar-se e pagou-lhe uma cerveja. Sentaram-se numa mesa mais reservada e Dieter, quase em surdina mas esbracejando como um possesso e batendo de vez em quando com o punho na mesa de forma dramática, falou-lhe da missão histórica da pátria, do orgulho ferido, do superior destino germânico, da necessidade imperiosa da purificação da raça e de um poder central forte, determinado e galvanizante; vociferou baixinho contra o inimigo comunista e falou de “líderes naturais” e de “escravos naturais”, da grande conspiração sionista contra a Alemanha. Apresentou-lhe termos novos como “espaço vital”, herrenvolk ou ubermensch. E convenceu-o, enfim, a aparecer numa sessão do novo partido amigo dos excluídos, dos infelizes e dos ressabiados, naquela altura recurso humano abundante no país, destroçado material e moralmente.

À semelhança do país, Karl foi então presa fácil do discurso exaltante dos nazis, no caso dele com o estimulo suplementar de lhe passarem a garantir o sustento e a carreira, por baça que fosse.

Pouco tempo depois do encontro na taberna, Dieter já formara um núcleo duro de meia centena de entusiastas prontos a tudo. De uma forma ou de outra, o partido deu um sentido de grandeza e de missão, um objetivo, à vida de Karl, que ali encontrou uma nova família. Naquela altura Hitler ainda não tinha sido detido na sequência do famoso golpe de estado da cervejaria, o já mencionado putsch, tentativa fracassada de tomada do poder na Baviera, e ainda não tinha escrito o famigerado "Mein Kampf" na prisão de Landsberg, mas era já uma figura carismática e o seu programa radical e o vigor das suas ideias espalhavam-se rapidamente pelas principais cidades. Os discursos de Dieter e de outras figuras locais do partido impressionaram Karl profundamente e este não só se filiou no primeiro comício como nos dias seguintes já andava ele próprio pela cidade a evangelizar, sóbrio e com roupa nova, um fato completo oferecido por Dieter, distribuindo propaganda e mobilizando as massas. De certa forma, Karl assimilou a noção de renascimento nacional associada aos ideais nazis e fez dela o foco do seu próprio renascimento depois de um período, ou antes, uma fase dolorosa. Como para tantos outros alemães da sua geração, gente ainda animada por fortes impulsos de vingança, a sua tragédia pessoal era a tragédia da Alemanha e a sua ascensão individual era a ascensão alemã.

Em breve passou a tratar das contas da secção berlinense do partido, dados o seu talento especial para números e uma mente invulgarmente organizada. Mas os anos vinte trepidantes, o florescimento económico e cultural alemão - que faria de Berlim, até à grande depressão de 29, pelo menos, uma das cidades mais excitantes do planeta -, só começaram de facto em 1924.

Naquele ano de 1922, de facto, o estado de espírito coletivo era depressivo e Berlim, como o resto do país, era uma metrópole a tentar colar os pedaços de uma alma estilhaçada e de um corpo arruinado: uma capital deprimida. E foi nesse clima, de mágoa e radicalização, que Karl deu a volta determinante à sua existência. As redes do partido proporcionaram-lhe emprego numa empresa de importação e exportação, experiência que lhe acabaria por ser útil mais tarde, no ministério e nas peripécias em que se veria envolvido, bem como na fase de ilegalização e clandestinidade do NSDAP, até à sua refundação por Hitler em 1925. Nesse ano de interregno os militantes não desmobilizaram, mantendo viva a estrutura adormecida e o fidelíssimo e constante Karl esteve sempre presente na linha da frente do renascimento da organização. Não foi, pois, surpreendente que com a subida dos nazis ao poder, oito anos depois, tenha sido rapidamente nomeado para um cargo de relativo vulto, ainda que adequado ao seu feitio discreto, num gabinete obscuro mas relativamente importante.

Quando a sua vida serenou, Karl continuou sozinho, mas despertou para o conhecimento. Descobriu o prazer da companhia dos livros e foi acumulando uma razoável biblioteca. De temperamento racional e decidido, descobriu-se também mais que cético, ateu e positivista, daquelas mentes afincadamente materialistas e adeptas do progresso e da lógica. Conservador nos costumes, não via limites à razão no que respeita ao engrandecimento do indivíduo e do povo a que ele pertence, indivíduo esse que, acreditava, precisava de causas galvanizantes para transformar em prática a ideia de ubber mensch, de super humano liberto dos constrangimentos da superstição e da moral judaico-cristã efeminada e corrompida. E o povo alemão, naturalmente, era o único, em seu entender, que poderia levar a cabo essa missão essencial de libertação e desenvolvimento.

Seguindo as pisadas de muitos outros compatriotas antes de si, começou cedo também a nutrir um helenismo apaixonado e os antigos gregos foram-se-lhe revelando, levando consequentemente aos mestres latinos, aos sábios e poetas do grande império romano, sobretudo a fase dos césares, que tanta impressão causava naquela altura na Alemanha, onde ressurgia a iconografia cesarista, a cavalo do respetivo ímpeto bélico e expansionista e de uma aliança forjada no aço com a Itália do Duce, espécie de reencarnação estilizada e brutal dos velhos imperadores de Roma. E, naturalmente, prioridade das prioridades para Karl, a vastíssima tradição filosófica e literária da grande nação germânica, pátria dos pensadores profundos e dos compositores maiores do que a vida. Justissimamente, diga-se de passagem, Karl privilegiava o tributo a esse património imaterial inigualável que era o seu. Nos últimos tempos dava particular atenção a gente como Friedrich Nietschze ou o contemporâneo Martin Heidegger, filósofo muito da moda nos círculos nacional-socialistas. Não percebia tudo o que lia, mas esforçava-se e por vezes escrevia a professores de filosofia da Humboldt, ilustríssima Academia berlinense por onde passaram figuras como Fichte, Hegel, Arthur Schopenhauer ou Friedrich Schelling. Ou Marx e Engels, mas estes não eram ex-alunos particularmente celebrados nesta altura, com a direção da universidade tomada de assalto pelo aparelho Nazi, como aconteceu de resto com todas as instituições universitárias alemães a partir de 1933. Karl escrevia-lhes colocando dúvidas acerca desta ou daquela passagem de alguma obra e quando podia ia até assistir a seminários e conferências.

Mas basicamente interessava-se por tudo e, homem rigoroso até na defesa dos seus valores, invariavelmente tinha ideias firmes acerca dos mais variados assuntos. A superioridade do seu povo era um desses assuntos. Politicamente era irredutível e embora já não houvesse na sociedade alemã, em 1938, muita gente com coragem para contra-argumentar, não obstante a sua notória falta de carisma, sustentava as suas ideias com grande poder de persuasão, quando encontrava assembleia, em ajuntamentos fortuitos ou à mesa do café. Transformava-se num populista e proclamava, às vezes subindo a mesas no café, a sua ideia de como o poder deve ser organizado e de como só um partido nacionalista e socialista poderoso, intransigente e implacável no cumprimento do seu programa, isto é, firme e avassalador, em torno de um líder forte e capaz, poderia levar a cabo essa missão vital da mãe pátria: levantar novamente a glória e a força da Alemanha, despertar o génio adormecido, libertar a grandeza oprimida, etc.. Mas na sua essência era um tímido e preferia não o fazer. Além disso era muito cioso da sua privacidade.

O acabrunhado e metódico Karl levava, no entanto, realmente tudo aquilo muito a sério e acreditava, sem ser má pessoa, que alguns fins justificam alguns meios. Só assim, de resto, convivia razoavelmente bem com o cortejo de perseguições, saneamentos, deportações, prisões arbitrárias e desaparecimentos que se multiplicavam desde há alguns anos na sociedade alemã, desde que os nazis haviam tomado o poder. Arbitrariedades que se iam sabendo nas ruas, nos cafés e nos salões das grandes cidades, não obstante a máquina de propaganda de Goebells que controlava ferreamente toda a comunicação social. Naquela altura, de resto, o controle dos média e da informação servia até mais para iludir as consciências estrangeiras, no sentido do apaziguamento, pois em termos internos o clima de perseguição era já aberto a judeus, comunistas, homosexuais e minorias étnicas.

A violência do regime e a crítica amordaçada, ainda que ferissem Karl no domínio dos seus princípios íntimos - prezava de facto a não-violência e cumprira o serviço militar durante os últimos seis meses de guerra ao comando de uma secretária de canto, nos serviços de retaguarda do Estado Maior, sem disparar um único tiro -, eram acontecimentos entendidos e relativizados como males necessários. A sociedade, acreditava, tem que ser purificada para renascer sem vícios, as térmitas que corroem o sistema serão exterminadas e a posteridade perceberá. Tal como entendeu e até celebra grandes nações antigas assentes em massacre, tortura, repressão e pilhagem. E nada daquilo era, afinal, muito diferente de tantos outros exemplos de ideologia em movimento noutras paragens; da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, então pujante montra da eficácia da tirania, às Comunas da Revolução Francesa, passando pelo Cristianismo ou pelo Islão, como em qualquer sistema bem sucedido, a receita utilitarista (ou «realista» no dizer de quem a aplica) repetia-se tão só. Os crimes? Rodapés inevitáveis na marcha do sucesso evolucionário dos povos. Evitava, porém, participar ativamente no terror; e tanto no emprego como no partido nunca deixou de ser fundamentalmente um pensador burocrata, não um homem de ação. Cauteloso, concentrava-se nos seus balancetes e não confiava em ninguém e evitava comentários que pudessem ser entendidos como reparo ou crítica, mas indignava-se em surdina com certas brutalidades sobretudo da polícia política. Sobre as perseguições aos judeus e aos bolcheviques, comparsas conspiradores, ou a minorias inúteis e piolhosas como os ciganos, não tinha muito a obstar.

Não se pensava ainda na altura na noção de extermínio, mas Karl concordava com os confiscos, com as expulsões e com os repatriamentos. Havia que arrancar a erva daninha pela raiz. Indignava-se, isso sim, com a violência contra os seus próprios compatriotas apenas por razões ideológicas ou até por razões meramente táticas e mesquinhas, ajustes de contas e saneamentos discricionários que se multiplicavam à mínima suspeita de dissensão. Karl não conseguia deixar de perceber que o ambiente social, apesar de otimista e exaltante, se tinha tornado demasiado carregado, pairava em todo o lado um clima geral de desconfiança e de um certo fanatismo, genuíno ou simplesmente encenado para não cair na mira do vizinho bufo ou das polícias, que eram todas de certa forma políticas. Toda a gente tinha muito cuidado com o que dizia e resumia-se o discurso público, nos cafés e nas tribunas, aos habituais temas oficiais do patriotismo, da pureza da raça e da grandeza da nova ordem. Em todas as tascas, em todas as ruas, em todos os prédios morava, pelo menos, um cidadão mais zeloso e ansioso por denunciar o parceiro do lado por comportamentos desviantes, leituras suspeitas, afinidades perigosas ou apenas por falta de entusiasmo patriótico. Por todo o lado se vivia numa espécie de atmosfera pastosa, uma esquizofrenia gasosa de medo e de esperança. Ainda que o aceitasse por amor a uma ideia maior, e até colaborasse, tudo isso trazia desconforto a Karl e a arbitrariedade cruel e a brutalidade com que certos departamentos governamentais ou para-militares exerciam a sua autoridade incomodava o seu espírito legalista, a sua crença na primazia do Direito, além da  sua sensibilidade pacifista.

Karl, convém sublinhar, não era um cidadão comum, tinha razoáveis responsabilidades quer no partido quer num dos ministérios chave do regime e apesar de não querer saber demasiado acerca de certos temas passíveis de trazer problemas, encontrava-se numa posição privilegiada para saber o que realmente se passava, nomeadamente nos campos de prisioneiros, nas minas e nas fábricas que já se enchiam de mão de obra escrava ao serviço sobretudo do complexo industrial-militar alemão. Os complexos industriais de extermínio vieram mais tarde, mas as indignidades já eram públicas e notórias. Karl, como vimos já, tinha-se no entanto como realista e para alguns realistas, os mais idealistas pelo menos, os dramas do presente são tão só os alicerces do futuro, degraus eventualmente infelizes mas necessários para que algo de melhor possa nascer. Necessários sobretudo quando a grande meta era limpar a sociedade germânica das metástases sociais, políticas, artísticas e económicas que como um cancro corroíam e espartilhavam o fantástico potencial teutónico. Era assim que pensava, mas ao contrário de muitos dos seus concidadãos, não rejubilava quando assistia à violência exercida - ainda que necessariamente - sobre aqueles que a máquina nazi resolvia eleger como inimigos. Não tinha no fundo maus instintos e tinha alguma formação humanista. Não era religioso, encarava até como meramente instrumentais os devaneios esotéricos do regime que lhe passavam pelas mãos no serviço, mas era sem dúvida um homem com sentido moral; um sentido moral marcadamente protestante e muito ligado às noções de ordem, trabalho e sobriedade. Mesmo assim, graças à militância e ao cargo, ao facto de ser uma peça colaborante da engrenagem nazi, o silêncio de Karl não era apenas cobarde ou passivo, era cúmplice; aceitava tudo aquilo a contragosto mas em nome de um bem superior e de uma visão de longo prazo, de algo que está destinado segundo as leis da história e da razão. E sabemos como o destino pode ser avassalador e como uma ideia se pode auto-cumprir. Karl sabia, achava que tudo aquilo tinha sentido civilizacional e que aos outros escapava o quadro maior das coisas; e isso de certa forma apaziguava a contradição.

Era este, por alto, enfim, o estado de espírito da terra e de Karl, criatura um pouco ríspida e estruturalmente angustiada. Isto é, já o era antes dos infortúnios, infante pouco dado ao riso e ao calor humano. Como foi referido antes, o nosso homem era mais dado às ideias, como muitos dos seus patrícios e, como eles, também habilidoso na difícil arte da circunspeção marcial que explode apenas em ocasiões solenes e raras. No fundo, estava ali o cidadão modelo do III Reich, ordeiro, dedicado, honesto e laborioso, sério por fora e moderadamente frenético por dentro.

Karl Stupmeier era assim magro e tinha uma estatura vulgar para um alemão, não mais de um metro e setenta, magro, sem marcas singulares no rosto comprido, além de uns ombros largos como um cabide, que os chumaços no casaco realçavam ao ponto de todo ele parecer uma espécie de triângulo invertido, não obstante as calças largas que costumava usar, não era de todo uma presença que sobressaísse. Em ambientes profissionais fazia um esforço visível por se manter ereto, sempre em sentido e em alerta, o que lhe dava um ar vagamente ameaçador e sem dúvida arguto. A contrastar com uma cara agradável e bem proporcionada, que até seria simpática sem aquele estado permanente de tensão, uma longa cicatriz com cerca de dez centímetros, notoriamente mal cozida e tratada, atravessava-lhe a testa ligeiramente acima do olho esquerdo, realçando o ar de espartana intimidação. Oficialmente era uma ferida de guerra, um estilhaço, uma bala perdida, algo sobre o qual, dizia a quem perguntava, não gostava de falar; na verdade fora resultado de uma sova que apanhara à porta de uma taberna, nos dias de miséria etilica berlinense. O cabelo negro, liso e curto usava-o, como era moda, sempre penteado para trás com brilhantina, o que realçava as grandes entradas e os olhos azuis penetrantes mas esquivos. Além disso era um homem rápido. Tudo o que fazia, fazia depressa e com ímpeto. Só sossegava à volta dos livros, à noite, e na horta, nos passeios e nos convívios com o padre Friedrich. Além da política, a solidão e a sobriedade redescoberta acalentaram em Karl duas novas paixões: a jardinagem e a leitura. Dedicava-se sobretudo a espécies hortícolas e aos autores germânicos que já mencionámos. Opções que reflectiam no fundo o seu grande sentido de utilidade e pragmatismo: de eficácia. Para Karl, flores e autores estrangeiros (tirando os clássicos greco-latinos) eram sem agravo perdas de tempo. O imortal Goethe convivia, assim, no seu espaço privado com o imprescindível pepino.

Alguns fins de semana, não obstante o sedentarismo militante, permitia-se viajar. Ou melhor, passear. Viajar compreende cruzar fronteiras e Karl as únicas fronteiras que se permitia eventualmente atravessar eram as da Áustria, da Dinamarca e, talvez, a da Suíça, o seu limes civilizacional. Quanto mais não seja, fazia-lhe muito mais sentido gastar o seu dinheiro no seu amado país, com tanta maravilha por descobrir, do que em países estrangeiros, ao menos ajudava os seus, pensava ao seu modo nacionalista rigoroso. De facto, dedicava-se sobretudo a conhecer a pátria e apreciava as excursões histórico-naturalistas organizadas pela secção cultural do partido ou pelo grupo de amigos do património da sua paróquia. Em rigor e em verdade, regressando à questão religiosa, Karl era ateu. No domínio do religioso não tinha dúvidas acerca de duas coisas fundamentais: da impossibilidade dos deuses e da sua respetiva utilidade. Era uma espécie de racionalista, um conservador que gostava de se considerar um realista com uma visão estruturalmente cética e pessimista acerca da espécie humana; e além da simpatia pessoal que nutria pelo seu pároco, apreciava deveras o rito católico, a tranquilidade das homilias, a paz das igrejas, os valores tradicionalistas Romanos, o amor da Igreja à hierarquia e a respeitabilidade que advinha de ser um viúvo que cumpre os Sacramentos e socializa com sacerdotes.

Além disso a participação da militância na vida das suas comunidades religiosas, católicas ou protestantes, era algo incentivado pelo partido, que não poupava esforços para se consolidar nos sectores mais religiosos e conservadores da sociedade. Também era, então, com fervoroso sentido de zelo ideológico que Karl frequentava a Missa dominical e aturava longas matinés de beneficiência, frequentadas sobretudo por viúvas e viúvos, sobretudo pelas primeiras. Karl havia perdido o interesse pelas mulheres, ou pelo menos assim julgava naquela fase da sua vida, e acabava invariavelmente essas tardes na conversa com o padre Friedrich, um velhote jesuita ainda mais magro que Karl mas muito menos ereto, que não gostava de nazis mas gostava ainda menos de comunistas. Também era um conservador, mas ao contrário de Karl, não era um radical. Não obstante as divergências, que eram muitas, e as diferenças enormes de temperamento, tinham encontrado há muito uma base mais que civilizada de entendimento: fraterna. Não era só uma questão de respeito intelectual mútuo, era um caso genuíno de amizade.

Não se encontravam como tal apenas nessas ocasiões especiais de convívio caritativo; o sacerdote era realmente um dos poucos amigos de Karl. O velho padre Friedrich conhecia todo o seu passado, assumira aquela paróquia berlinense nos anos de juventude de Karl, conhecera a sua família e fora na sua bela igreja gótica de tijolos vermelhos enegrecidos pelo fumo, de onde se destacava ao centro da fachada um grande torreão sineiro branco, que Karl e Herta, a sua falecida mulher, se conheceram e eventualmente casaram. Os dois homens encontravam um no outro, enfim, um espaço de liberdade que não tinham em mais lado nenhum ou com mais alguém. Muitas das suas conversas, por outro lado, não passavam tanto pela política ou pela atualidade nacional e internacional, ainda que não deixassem de falar de tudo, literalmente, até porque ao clérigo tudo lhe interessava. Falavam muitas vezes de livros que liam, de história, de filosofia, de ciência e de teologia, discutiam a madame Blavatsky e o hermetismo, falavam de África (Friedrich passara uma longa temporada no Sudoeste Africano Alemão, território que se viria a chamar Namíbia, e como tal recorria muito ao tema) e falavam também da vida dos outros; sempre com grande elevação e cordialidade. Acima de tudo, respeitavam-se.

O padre Friedrich conhecia, naturalmente, a posição de descrença irremediável de Karl, mas estimava-o se calhar mais por isso. De resto, demonstrava conhecer melhor as Escrituras e a teologia do que a maioria dos outros paroquianos crentes praticantes ferrenhos, geralmente gente de um só livro. Naquela altura da sua vida, o sacerdote era um espírito livre e a seguir à biblioteca particular abundante e pouco canónica e ao licor de maçã, o que mais gostava na vida era de trocar ideias. E o solitário Karl, livre de obrigações familiares, tinha algum tempo livre e não se fazia rogado. Era visita assídua à sacristia e à residência paroquial contígua à igreja. Normalmente aparecia ao final da tarde, uma ou duas vezes por semana, ou aos domingos também ao entardecer. Quando tinham mais tempo, passeavam no jardim em torno da igreja, um belo parque murado, sem acesso público a não ser para para a imortalização fotográfica de casamentos e batizados. O pequeno parque tinha um pequeno lago com carpas vermelhas, rãs e nenúfares e era nessa zona que mais apreciavam conversar e contemplar.

Os últimos dois meses deste Verão de 1938 tinham sido passados quase exclusivamente a discutir a problemática da consubstancialidade, tema de grande subtileza teológica e de enorme importância para o catolicismo romano. Debateram intensamente as incidências da natureza divina de Jesus Cristo, esmiuçaram o concílio de Niceia e o arianismo e ao fim de todo esse tempo, sem consenso à vista - Karl insistia que Cristo era um deus votado deus numa assembleia de homens; Friedrich mantinha-se firme na convicção de que Ario de Alexandria não passava de um lunático marginal e que Cristo era, para todos e para todos os efeitos, "O Deus", consubstanciado, muito antes do concílio, como de resto comprovavam várias passagens dos evangelhos canónicos; argumento que Karl não aceitava, visto que em nenhuma parte do Novo Testamento Jesus afirma ele próprio ser Deus e que além disso nada disso interessava porque o concílio efetivamente debatera e votara a questão; etc. - resolveram pura e simplesmente mudar de assunto.

- Karl, esta merda já cheira mal, vamos falar de outra coisa.
- Está bem, padre. Mas tem de admitir que foi uma excelente conversa.
- Como queiras, doem-me os ossos, ajuda-me aqui com a almofada. E preciso também que me ajudes com as contas da igreja, a Berta tem estado doente e tenho desleixado os papéis. Não te importas?
- Claro que não, padre.
- Obrigado. Como estava hoje o nosso elegante Reichsminister?
- Bem-disposto, como sempre desde o acordo de Munique, na semana passada, as potências europeias vergaram-se à vontade germânica e os Sudetas e a Checoslováquia foram mais uma vitória estrondosa do Fuhrer. Depois de cumprida a anschluss com a Áustria em Março, tem toda a razão o ministro para andar bem-disposto. Aliás, todo o povo alemão devia andar bem disposto. E creio que se prepara algo em grande, algo maior. Ouço rumores...
- Rumores... Se bem me lembro, em Munique o teu Fuhrer também prometeu sossegar em troca da pobre Checolosváquia. Mas nunca se sabe, realmente, o homem uma besta traiçoeira, um saloio sem ideias originais e com instintos primários, e nunca deixará de me espantar essa veneração pelo homem, valha-me Deus, mas tu não vês que o homem é um imbecil megalómano? E logo tu que nunca fizeste mal a ninguém, Karl, conheço-te como um homem de paz e custa-me essa cegueira que vejo em ti. 
- O homem não é só o homem, é o que ele diz, é a mensagem. Sou ateu, não acredito no seu deus, mas acredito noutras coisas e uma delas é o poder da razão. Hitler restaurou o ânimo e o bem-estar da Alemanha e está a apenas a recuperar território pátrio legítimo, não estamos a reclamar nada que já não seja nosso. Temos connosco a razão da história e a razão do desígnio. Nem Hitler nem o povo querem a guerra, mas se ela acontecer será justa. Além disso, o padre nunca o ouviu a falar em público, é emocionante. Hei-de levá-lo um dia destes a um comício, se for vai perceber. Também não lhe fazia mal folhear os livros e os panfletos que lhe tenho trazido, de vez em quando.
- A mim bastou-me o Mein Kampf, e o que ouço e leio todos os dias, não preciso de perceber mais nada, é um chorrilho de barbaridades. Além disso já o ouvi na rádio, é um artista de variedades, um pantomineiro, e vocês são ratos amestrados, ainda mais imbecis do que ele. É uma doutrina de ódio, não há homens superiores, isso é blasfémia. Hitler é um blasfemo!
- Pode ser, mas atrás dele é um povo, uma civilização, uma grandiosidade, um futuro. A esperança não está no seu céu, está na imortalidade da raça. Hitler restaurou o orgulho ao povo, deu-lhe esperança na grandeza do seu país. Não só com palavras galvanizadoras, mas também com acção determinada. Esperança, percebe?, aqui e agora. A Alemanha é hoje uma nação forte e respeitada. Não são ideias vãs, são realidades indesmentíveis. O povo não tem de ser superior, basta-lhe essa convicção. A sua fé também se baseia nesse princípio, os crentes não precisam de ser imortais, basta-lhes a crença nisso mesmo. Daí até serem criaturas morais vai um pequeno passo.  A nossa doutrina é apenas um pouco mais exaltante: além de imortais, somos melhores. Vá, mostre-me lá então esses papéis, já se faz noite e queria ir jantar a casa, não me queria deitar tarde. Se for preciso levo-os e vejo-os em casa.
- Por aqui. Que rumores são esses?...
- Não sei bem, grandes movimentações nas chefias, muitas fardas importantes pelos corredores. Algo em grande!
- Até tenho medo de saber mais. Mantém-me informado.
- Será o primeiro a saber, não se preocupe, talvez seja algo suficientemente grande que o convença finalmente da verdade do destino histórico do povo alemão e do Fuhrer como catalisador desse poder imparável, somos superiores e vamos prevalecer. Faria bem em habituar-se à ideia, é o futuro, aliás, é o presente.
- Não é difícil, anda tudo eufórico com o teu Hitler, até a minha Igreja o leva ao colo, apesar da chafurdice com os deuses pagãos. Deve ser profeta, realmente, e sou eu que não vejo a luz. Ainda assim, acho que é um cabrão de um saloio raivoso. Somos todos ateus em relação a alguma coisa, em sou em relação à Grande Alemanha de que falas com tanto entusiasmo, é um grupo de gente violenta e imperialista e esta perseguição implacável aos judeus, com os quais, como sabes, não simpatizo, é inconcebível num país civilizado e com uma tradição humanista essa sim gloriosa; só prevejo desgraça. E além disso não me interessa o orgulho das nações, já não tenho pachorra para essas criancices.
- Espero que não fale assim com todas as suas ovelhas, sabe tão bem como eu que seria uma imprudência, muitos dos paroquianos são membros do partido e não teriam qualquer problema em denunciá-lo à Gestapo, uns para ficarem bem-vistos, outros porque já começam a ficar incomodados com os seus sermões cheios de insinuações políticas. Até agora ainda não pisou o risco, mas modere-se no moralismo. Tem de ter mais cuidado, padre. Além disso, como acabou de dizer, a sua Igreja está connosco e percebe o alcance mais profundo da missão civilizadora - e evangelizadora - germânica.
Disse Karl, apressando o assunto e levantando bem alto o braço direito com o indicador esticado para os céus ao pronunciamento da palavra “evangelizadora”.
- Está bem, não se fala mais nisso. Olha estão nesta gaveta, vê lá e Deus te pague.
 
Karl preocupava-se com o padre. Com a idade perdia o medo e um homem sem medo perde a sensatez. Não é que estivesse a perder as capacidades intelectuais, pelo contrário, parecia cada vez mais vivo e acutilante, mas de há uns anos para cá era patente que tinha lapsos de memória e que também tinha cada vez menos vergonha. Não era um idoso frágil, de todo, mas já tinha mais de oitenta anos e começavam-se a fazer notar uns quantos sinais de senilidade, ou algo que uma leitura apressada poderia qualificar como tal. Nunca fora, por exemplo, criatura de grande tento na língua. Mas nos últimos anos começara a abusar sem qualquer constrangimento do calão mais rasca. Praguejava como um estivador de Rostock, sua cidade natal. Tinha ainda, naturalmente, algum discernimento profissional e respeitava as cerimónias públicas religiosas ou outras a que presidia, mas não eram raras as vezes em que o fazia com estranhos. Preocupava-se cada vez menos, no fundo, com o que os outros poderiam pensar dele e desprezava cada vez mais as instituições e as convenções.
 
Karl era um formalista sisudo, mas com Friedrich abria claramente uma exceção e não só respeitava a forma de estar do velho amigo, como achava imensa graça aquela extravagância do sacerdote. Até as máquinas gostam de quebras na rotina e de pequenos espaços de transgressão.
 
Friedrich era cada vez mais um homem livre e Karl sentia-se atraído por essa condição essencial do amigo. De cada vez que saia da casa paroquial, no fim de mais uma tertúlia, contraia os lábios numa espécie de resignação e pensava algo como «bem, regressemos então à realidade». O padre Friedrich e aquele pequeno jardim murado eram outra coisa que não «a realidade». Era outra realidade. Uma realidade diferente. Fora dos muros do jardim, Karl era o cidadão nacional-socialista que dava o seu melhor pelo renascimento glorioso da Pátria e da Raça e que não hesitaria um segundo em limitar ou suprimir liberdades incómodas para o Reich e para as suas convicções patrióticas. As horas com o padre Friedrich constituíam, desta forma, uma espécie de prazer clandestino, quase uma prática dissidente.

 
II


Depois de ter estado até mais tarde do que previra a analisar a contabilidade da igreja, que não conseguiu deixar para o dia seguinte, Karl não precisou de grande esforço, nem do despertador, para se levantar mais cedo do que o habitual. Acordou até um pouco sobressaltado e nervoso. A secretária do director do DOE, o sinistro Heinz Schneider, informara-o no dia anterior que estava convocado para uma reunião com o próprio Schneider nessa manhã logo à sete e Karl ficava sempre nervoso quando tinha de reunir com o poderoso diretor. Ainda mais quando ignorava o motivo da convocatória, acontecimento particularmente invulgar, e mais ainda mais porque Schneider, um gigante prussiano loiro de quase dois metros, militar, era particularmente assustador durante as manhãs. Tinha um bigode farfalhudo e um feitio irascível, por isso Karl acordou muito antes e preparou-se com todo o cuidado, sem esquecer a pequena cruz suástica dourada na lapela. Chegou ao seu gabinete uma hora antes do encontro e ficou sozinho à espera, a olhar para o relógio e a matutar no que quereria o diretor.
 
Sem se levantart, Schneider olhou para Karl de alto a baixo com um relance rápido mas visceral, baixou a atenção para o dossier na secretária e estendeu o braço direito com vigor.
- Heil. Sente-se. Karl, estivemos a ver o seu ficheiro e verificámos que era o único funcionário neste departamento que sabe português. Posso perguntar o porquê deste interesse nesta língua e onde aprendeu?
- Não sabia que era o único, aprendi num curso da minha paróquia, o padre viveu em Lisboa durante cerca de quinze anos, ensinava alemão, latim e grego num seminário português, se não me engano, enfim, é poliglota, também domina o polaco e o italiano e de vez em quando dá cursos de línguas estrangeiras. Eu na altura trabalhava numa firma de comércio internacional que fazia alguns negócios com Portugal e com o Brasil e essa competência revelou-se útil.
- Sabe inglês?
- Um pouco.
- Então leia isto.
O diretor deu a Karl um recorte de jornal colado numa folha branca. Era uma notícia do americano The New York Times, de 26 de Janeiro desse ano e que relatava uma ocorrência meteorológica inusitada na Europa, com o título "Aurora borealis startles Europe. People flee, call fireman" (“Aurora Boreal assustou a Europa. As pessoas fugiram, chamaram os bombeiros”).
 
“Londres, 25 de janeiro de 1938. A Aurora Boreal raramente vista no sul da Europa Ocidental espalhou medo em regiões de Portugal e baixa Áustria esta noite enquanto milhares de bretões eram trazidos apressadamente às ruas estupefactos. Um brilho sanguinolento levou muitos a pensarem que metade da cidade estava em chamas. O Departamento de Bombeiro foi acionado com o temor de que o Castelo de Windsor se teria incendiado. As luzes eram claramente vistas na Itália, Espanha e até Gibraltar. O brilho banhando as montanhas cobertas de neve na Áustria e na Suíça era um belo espetáculo, porém os bombeiros foram acionados várias vezes para apagar incêndios inexistentes. Os povoados portugueses agitaram-se e muitos fugiam das suas casas temendo o fim do mundo.”
 
- Alguns chamaram-lhe “a cortina de fogo”. É capaz de não ter dado pelo evento, a nossa imprensa não lhe deu muita importância, aconteciam coisas muito mais importantes no país, deu apenas umas notas de rodapé. Mas como vê, deu algum brado pelo mundo. E em certos círculos continua a dar.
- Lembro-me vagamente, sim, mas que quer o meu diretor dizer com isso, continua a dar em certos círculos?
Schneider mergulhara novamente a cabeça no dossier e ignorou a pergunta de Karl. Ficou por uns minutos em silêncio a ler e de repente disse:
- Entre 1918 e 1922 há aqui um buraco na sua vida. Onde é que andou?
- Foi um período difícil da minha vida.
- Hummm... infantaria, guerra de gabinete... Você desenrasca-se no mundo ou é homem de papéis?
- Senhor diretor, sei dar o meu melhor perante qualquer circunstância, assim a pátria mo peça. Sinto-me bem no meio dos papéis, mas o mundo não me é estranho. Ainda que nunca tenha ido muito longe, é um facto.
- Sim, e é bom com papéis, sem dúvida. O trabalho da sua secção é louvável.
- Obrigado, senhor diretor.
- É um homem religioso?
- Não.
- Falou há pouco de um padre e da sua paróquia, explique lá melhor isso.
- Frequento a igreja católica mas não sou crente. É mais por hábito, mas também, quem sabe, porque ainda não desisti de encontrar deus.
- Faz bem, ir à igreja é um bom hábito. Vejo que é viúvo, sem grandes laços familiares.
- Os meus pais morreram ambos na guerra, tenho uma irmã que vive em Magdeburgo. Correspondemo-nos.
- Muito bem.
 
O coronel Schneider também não perdia tempo com subtilezas. Levantou-se, foi até à janela, cruzou os braços atrás das costas e, virando-se imponente para Karl, disse:
 
- Karl, a pátria chama-o.
 
O guarda-livros tentou manter-se inexpressivo, mas não conseguiu evitar um esgar de surpresa, perante o dramático e inusitado apelo. Nunca fora realmente um homem de ação, nem na guerra, nem no partido, nem na vida profissional e aninhara-se confortavelmente numa existência tranquila e rotineira nos bastidores. De modo que ficou animado por um misto de medo e excitação.
 
- Ouviu o que eu disse? A mãe pátria chama por si!
- Sim, senhor diretor, claro, isto é, naturalmente.
- Acredita no desígnio do Reich e na liderança do Fuhrer?
- Não acredito noutra coisa...
- Ótimo. A minha secretária vai dar-lhe um dossier à saida, estude-o e amanhã voltamos a conversar. Marque a hora com ela. Heil Hitler!
- Heil Hitler, meu diretor, obrigado pela confiança.
 
Schneider regressou imperturbável à secretária e Karl voltou ao seu gabinete, com uma pasta cheia de documentos, com uma etiqueta na capa: “Fátima - Confidencial”. Decidiu resistir à tentação e despachar primeiro o expediente mais urgente. Chegada a hora de almoço, informou os subordinados que não voltaria da parte da tarde, apanhou o metro e enfiou-se em casa a ler o dossier do DOE.
 
Karl estava mais ou menos familiarizado com o fenómeno de Fátima, localidade portuguesa que era desde há cerca de duas décadas um dos principais focos de peregrinação católica romana na Europa. Crescera num contexto protestante e embora lhe interessasse o tema católico, nunca tinha aprofundado o assunto, mas já vira referências em diversas publicações e já tinha sido assunto de conversa com o padre Friedrich, uma ou outra vez, lembrava-se sobretudo da dimensão profética do milagre, e da questão dos segredos e da coinversão dos comunistas, ainda que tivesse de rever os pormenores. Já Portugal, em geral, era assunto mais recorrente. O sacerdote fizera o tirocínio missionário na África austral alemã, no princípio da década de oitenta do século XIX, e aprendera lá a língua portuguesa, por via da proximidade com Angola a norte, colónia portuguesa onde a Companhia de Jesus tinha uma forte presença, que remontava ao século XVI. Dois anos depois, Friedrich contraiu uma doença tropical e a congregação decidiu enviá-lo a conselho médico para um clima ameno, de preferência mediterrânico. Como já falava português, decidiram-se por Portugal. Em Lisboa, o jovem Friedrich, com 27 anos, fez amizade com Carlos João Rademaker, jesuita influente em Roma, fundador e diretor do Colégio de Campolide, uma das instituições de ensino mais prestigiadas do país, frequentado pelos filhos da fina flor social portuguesa da época. Sob os auspícios de Rademaker, a estadia de Friedrich, que já estava farto da tórrida indigência africana, onde nem sequer existiam bibliotecas decentes, foi-se prolongando. E pouco depois estava a dar aulas de Alemão e de línguas clássicas, Grego e Latim, no Colégio. E quando Rademaker faleceu, em 1885, já era professor efetivo. Em 1897 regressou à Alemanha e alguns anos depois foi-lhe atribuída a paróquia berlinense onde ainda se mantinha e onde conheceu Karl. Nunca deixara, no entanto, de se interessar pelo pequeno país ibérico e por diversas vezes regressara a Portugal, em temporadas de 15 dias ou um mês. E sempre que voltava, de baterias carregadas do sol mediterrânico e dos feitios mais ardentes, partilhava as novidades com o circunspecto Karl, que, desta forma, ao contrário da esmagadora maioria dos seus compatriotas, conhecia razoavelmente este pequeno e habitualmente discreto país do extremo sudoeste do continente, geografia tão estrategicamente interessante como humanamente desprezível, sítio de gente escura, pequena e arraçada de africana. A verdade também é que apesar dos relatos do padre, obviamente mais dado aos multi-culturalismos, que incluíam pequenas aulas de história com episódios de grandeza antiga daquele povo pequeno, na sua mente os portugueses eram pouco mais do que ciganos enfiados numa pátria pobre e isolada do tamanho de um lander. Uma espécie de romenos atlânticos com manias imperiais de grandeza, mas com quem o Reich mantinha relações cordiais e frutuosas por razões táticas.


Sozinho perante a sua própria história pessoal irrelevante e torturada, Karl tinha no entanto inveja do passado do padre, rico em experiências exóticas. Embora se sentisse confortável no seu casulo emocional e iodeológico, a sua vida, espremida, era uma sucessão de episódios traumáticos, sensaborões, pequenos, rotineiros e paroquiais. Era como se não tivesse grandeza própria. Um parafuso consciente do sistema, cuja maior emoção era pertencer à máquina, partilhar o desígnio da máquina, ser parte eficaz de algo maior e com sentido profundo, patriótico, sanguíneo e enraizado em milénios. Mas na prática era uma vida sem paixões nem novidades e o outro estrangeiro de que falava o padre era-lhe efetivamente outro e estrangeiro, desligado da experiência e da empatia, matéria de consideração intelectual, algo irremediavelmente de fora, estranha. Ainda que Berlim fosse uma cidade cosmopolita, com delegações e chancelarias de todas as nações espalhadas pelos quarteirões centrais da cidade, tinha então poucos ou quase nenhuns emigrantes, e os que existiam eram sobretudo eslavos do leste europeu, ou seja, o contacto cotidiano com estrangeiros não era frequente. Karl, como tal, nunca se tinha cruzado na vida com um português.

Em relação a Fátima, ao mundo das devoções e dos santos, como já vimos, Karl tinha para começar uma relação desapaixonada. Compreendia a razão prática da existência de gabinetes como o seu DOE, ou destas missões ao âmago da simbologia católica, tal como compreendia a razão prática da doutrina nazi, ao mesmo tempo simples e clara, lapidar de tão definitiva; isto mesmo sabendo ele que algumas figuras do regime acreditavam de facto numa  transcendente para o que faziam. Tinha de Hitler, no entanto, a imagem de alguém mais pragmático. Não que os crentes não pudessem ser pragmáticos, sobretudo na prossecução das suas supostas verdades, mas tinha a certeza que a vontade do Fuhrer era animada, tal como a sua, por impulsos acima de tudo racionais. Os deuses, em seu entender, são meros instrumentos de soberania e de autoridade simbólica. Era também assim que Karl entendia as aproximações do Reich às diversas confissões cristãs ou a amizade do líder com muftis islâmicos. Onde fosse necessário. Alianças táticas e uniões de conveniência. Meios justificados por um fim maior. O ponto 24 do programa do partido estipulava, de resto, com relação a religião: «Pedimos a liberdade no seio do Estado para todas as confissões religiosas, na medida em que não ponham em perigo a existência do Estado ou não ofendam o sentimento moral da raça germânica. O Partido, como tal, defende o ponto de vista de um cristianismo positivo, sem todavia se ligar a uma confissão precisa. (...)». E isto para Karl era uma assunçao clara do caráter instrumental das igrejas, ou dos mitos pagãos que excitavam algumas figuras de topo como o próprio Hitler, amante e mecenas da obra de Richard Wagner. Ciente da importância dos mitos e dos símbolos, o regime nazi dava realmente extrema atenção a tudo o que fossem artes, folclore, lendas, símbolos, mitologias e rituais que de uma forma ou de outra pudessem legitimar ou perpetuar o mito maior e central da superioridade ariana, do novo Povo Escolhido.

Todo o homem, até um nazi, têm direito à sua complexidade e Karl era também ele todo um contexto, que pode ajudar a perceber tudo o que se a seguir se passará. Trespassado na alma por um passado humilhante e doloroso, paralisado pelo trauma do álcool e do luto, era sobretudo um homem das ideias, ao contrário do padre, ou do Fuhrer. E isso refletia-se distintamente na sua postura. Não era uma mente brilhante, longe disso, via-se e desejava-se para conseguir penetrar no Heidegger, por exemplo, e forçou-se a ler o Sein und Zeit ao ponto de lhe provocar fortes dores de cabeça; apreciava axiomas, aforismos e muitas vezes aborrecia-se por não conseguir acompanhar o discurso do amigo jesuíta, criatura particularmente lúcida, fluente e enciclopédica. Karl tinha noção dos seus limites, mas era no pensar e não no sentir que se achava mais confortável. Não era empático e evitava o contacto humano bilateral e informal sempre que podia. O única proximidade humana que admitia e apreciava era no seio de multidões, uma vontade anónima subsumida num todo de vontades iguais, onde as fraquezas se sublimam numa maré de poder coletivo. Mas por norma era o que se poderia chamar um “bicho do mato”, um solitário que detestava o convívio de circunstância. A sua vida social, aliás, resumia-se a reuniões de trabalho e a assembleias partidárias. Até a missa, que para os crentes era um ato de comunhão e partilha, era para ele um momento solitário de introspeção. Cultivava, aliás, um desprezo mudo e altivo pela humanidade, uma quase raiva nascida da mágoa. Além do início catastrófico de vida adulta que já conhecemos, Karl tinha a marca de uma educação calvinista, severa e lacónica, com ênfase na eficácia e pouco dada a devaneios. Tudo isso fazia dele, enfim, um homem sem calor. A centelha do amor ainda se fez notar com a jovem mulher, mas foi sol de pouca dura e a sua morte apagou qualquer brilho que ainda subsistisse. A não ser, é claro, por razões de fervor ideológico ou por um qualquer êxtase artístico. No trabalho, era o funcionário discreto e de confiança a quem se augurava carreira regular nos quadros intermédios. Para o melhor e para o pior, não estava aparentemente destinado à distinção. Ou à criação. 




... (continua)


Nota do autor: Este texto é regularmente actualizado, por vezes apenas para alterar uma palavra, uma vírgula. Não sei quando termina. Mas quando for a altura de escrever "Fim", será retirado da internet e sairá de cena, como alguém que morre, depois de um breve período de exposição lutuosa. Provavelmente reencarnando noutro local. Não se sabe.

Nota 2: O autor adere e não adere ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Nota 3: Seja como for, rascunho, não é simpático vir aqui copiar e colar noutro sitio sem atribuir a justa autoria, por isso não roubem, peçam.