The mass of men lead lives of quiet desperation, Henry David Thoreau


Para sua desgraça, recordar tornava-se cada vez mais irresistível com o passar lento dos dias que se amontoavam, também irresistivelmente. As memórias acossavam-no, mordiam-lhe as canelas do ser com uma tenacidade crescente e terrível. Ao contrário do esquecimento que poderia ter suposto, o passado tornava-se também cada vez mais claro, uma nitidez seletiva que realçava o sofrimento, o erro, a frustração e o trauma. Eram raros os momentos felizes que lhe ocorriam e como tinha pouco com que se ocupar ou distrair e vivia cada vez mais na mente, raramente ou nunca era feliz.

O assédio constante da memória tornava, além disso, ainda mais doloroso o vagar pastoso do tempo, que se arrastava como lava na planície. Achava por isso de uma ironia de mau gosto o fascínio que a lentidão dos dias meridionais exercia sobre as pessoas do norte, das cidades e do litoral, gente farta de pressa e de azáfama, gente sedenta de mais tempo. De mais tempo precisamente para pensar na vida, essa angústia. Para que raio é que havemos de querer mais tempo?!... Além de uma pequena horta e de uns quantos animais de criação, meia dúzia de galinhas e um galo, alguns coelhos, um casal de gansos e um porco, e de constantes pequenos arranjos na propriedade, tinha pouco com que se ocupar e menos ainda com que se distrair. Não tinha televisão, não gostava de ler livros, desprezava as notícias e as conversas da rádio e os seus momentos livres, longos, eram passados a recordar o que não queria. Gostava de música, alguma, cada vez mais a banda sonora de uma melancolia. 

Os dias alentejanos mais longos, que maravilham o forasteiro por supostamente «darem para tudo» e serem mais «lentos», arrastavam a depressão como se fossem pesos nas pernas. O tudo da sua vida reduzira-se a um quinhão de coisa pouca, um punhado de terra seca e inclemente. Além disso, das dores de um ontem mais remoto, sentia saudades do cão, do último que lhe fizera companhia e que mais estimara. O rafeiro César desaparecera um dia destes, há dois anos atrás sem deixar rasto.

Desde a morte do irmão que vivia sozinho e de dia, quando não estava a cuidar do pouco que havia para cuidar, de alguns pequenos cultivos, de uns arranjos preguiçosos, passava muito tempo sentado num banco de jardim de ferro forjado em arabescos ferrugentos que instalara debaixo de uma figueira, junto à casa. O isolamento e a nostalgia eram piores no Verão ou no Inverno. Quando o clima moderava, o homem arriscava caminhadas pelo campo, evitando os pastos, procurando a sombra rara. Rumava então a montes vizinhos, para visitar este ou aquele, quase sempre moradores mais velhos ou mais doentes e incapazes de retribuir a visita. E um ou outro novo proprietário, gente urbana e acolhedora que dava um ar da sua graça sobretudo ao fim de semana. Mas os longos invernos e os enormes verões era um vago tormento solitário, na companhia de livros ainda mais soturnos.

A sua casa era comprida e airosa, as paredes pintadas de azul claro e uma faixa branca em rodapé, mas era notória alguma decrepitude e desmazelo, muita tinta descascada. Sentia saudades e remorsos, raramente lhe vinham à mente acontecimentos felizes, o negro sobrepunha-se tirânico e remoía no arrependimento e na impotência perante o que foi e o que não foi e o que podia e devia ter sido, entristecia, murchava mais amargo que melancólico. «Se eu soubesse o que sei hoje» era uma das suas frase de estimação, que o perseguia por todo o lado. Estendia o olhar e a vastidão da planície, amarela e quente, adensava essa impressão de tempo pastoso, esmagador e vazio de propósito. Perseguido pelo passado e sem fuga possível, aquele campo largo a perder de vista, aquela vista sem horizonte parecia-lhe antes uma espécie de limbo infinito, árido e sem esperança de redenção, algo saído de uma qualquer divina comédia. O pensamento, no entanto, era tudo o que lhe restava. Refugiava-se da paisagem imensa na imensidão da mente, ess'outro continente brutal e secreto.

E na sua espécie de pequenez frágil ampliada pela geografia, na sua imobilidade, agonizava devagar e com raiva.

Um dia estava sentado no seu mocho no cimo do monte quando viu uma pequena nuvem de poeira a formar-se ao longe. Há cinco dias que não via vivalma e não esperava visitas. Deixou-se estar imóvel enquanto a poeira na estrada lastimável se agigantava. «Estes vêm com pressa», pensou, antes de reconhecer o jipe verde da Guarda Nacional Republicana. Estranhou, costumavam passar sempre de quinze em quinze dias desde há uns anos - fruto de uma nova política «de proximidade» com o cidadão desertificado, como lhe explicou na altura um sargento, a reboque de uma vaga de crimes que tempos atrás passou pelo baixo Alentejo e que deu brado nos jornais da capital obrigando a medidas de modo a tranquilizar a nação - e só tinha decorrido uma semana desde a última visita. Tentou endireitar a coluna, esforço inglório e doloroso. Aos 65 anos a rigidez deformada da alma amargurada expressava-se de certa forma na espinha um pouco dobrada que o fazia aparentar mais envelhecido do que realmente era. Era holístico na sua forma torturada de estar e de ser. Conseguiu pelo menos sacudir os vincos e ensaiar um rosto simpático, na medida do possível, que era a conversa de sempre em toda a parte do mundo, «tudo bem, vizinho, na medida do possível». A cordialidade para ele era uma possibilidade regra geral remota. Tentou então uma expressão «na medida do possível» amistosa. Não queria sobretudo inspirar pena ou cuidado, há anos que andava a enxotar a segurança social e as senhoras dos lares, que por vezes apareciam, principalmente desde a morte do irmão, com quem co-habitara e que se enforcara também um dia destes, vagos e absurdos, na planície sem deixar também ele grande rasto. 

Sem espírito para a cordialidade, procurou, então, manter um ar digno e esperou pelo jipe da guarda. 

- Qual é a história deste?

- Uma história de merda.

- Isso não é muito.

- Não é muito? Estás enganado pá, foda-se, é carradas de muito, é tanto que nem te passa pela cabeça. É a puta da vida e isso é sempre muito, não te esqueças disso, é sempre muito.

O outro encaixou e calou-se e o primeiro sargento Jacinto Mendes, mãos firmes no volante que tremia freneticamente apesar da reduzida velocidade, deixou assentar a poeira do impacto da sua sabedoria feita de muitos anos na terra. O cabo olhou pela janela e começou a pensar na sua própria história merdosa. Uns minutos depois, vendo que o outro não reagia e sem tirar os olhos na estrada esburacada que parecia não ter fim, o sargento recomeçou a narrativa.

- Está sozinho neste cu do mundo vai fazer agora ano e meio. Matou a mulher, esteve dentro quinze anos e voltou para aqui quando saiu. Viviam ali para a zona de Lisboa, mas ele nasceu aqui, o monte é herança, os pais ficaram com ele na rebaldaria do 25 de Abril. Pirou-se daqui antes disso, quando foi para a tropa, esteve na guerra colonial e ficou por África antes de ir para Lisboa. Voltou para casa depois da cadeia há coisa de quatro anos, penso eu que para morrer no monte ao pé das oliveiras, que é uma espécie de tradição familiar. Há ano e meio o irmão que morava aqui com ele matou-se, deve ter sido um desgosto muito grande. Agora esta notícia... É a puta da vida, cabo Neves, a puta da vida. Bem, mas, telegraficamente, é isto. E como te dizia há bocado, não parece mas é muito.

- O que é que ele fazia em Lisboa?

- Sobre a vida na cidade não se sabe muito, ele não fala, a gente não pergunta.

O soldado mais novo, recém chegado ao Alentejo, não perguntou mais nada, presumiu que o velho tivesse assassinado a mulher por causa de outro homem. É sempre por causa de outro homem, ou de outra mulher. E além disso era um assunto que já não interessava a ninguém. Entretanto já se conseguia perceber o monte do velho ao longe na planície, mas ainda faltavam uns três ou quatro quilómetros, calculou. Começou a percorre-lo então um espírito triste, quase que o sentia, a instalar-se na mente, na pele e pelas entranhas, uma melancolia de cima a baixo. Procurou sacudi-la.

- Posso? perguntou apontando para o rádio.

- Dá-lhe, só desliguei porque me pareceu ouvir uns tiros de caçadeira, lá para trás.

O cabo Joaquim Neves percorreu algumas estações FM e parou por uns segundos numa música dos Foo Fighters que já não ouvia há anos. Outros tempos e outras vidas mas entretanto durante alguns segundos sentiu-se revigorado. Ainda bateu o pé uma dúzia de vezes. «I can change my ways, I can search my days; I know I payed my dues; Nothing can change what always remains; I keep bangin' on with you...» mas a guitarra agreste deu cabo do frágil equilíbrio interior ao sargento. Sem cerimónia, mudou de estação.

- Não me fodas. Aqui nesta viatura quem manda sou eu. Desculpa lá, dá-me dor de cabeça, foda-se, com este calor não dá, parece que nos rebenta a cabeça, tem paciência, se queres música mete outra merda mais calma..

O cabo delisgou o rádio e distraiu-se com o smart phone e dois ou três fados depois chegavam à casa de José Pedro Amaro, o antigo homicida que esperava sentado num banco de jardim ferrugento. Este não se levantou, limitou-se a tocar na boina e a dizer bom dia. Enquanto o sargento esticava as pernas e abria o peito à magnífica paisagem, Joaquim não tirava os olhos do homem, que não lhe parecia ter nada de extraordinário. Magro e pequeno como são milhares de homens e caminhar para velhos que a vida encolhe e entorta até ao definhamento final. Nos olhos cansados mas atentos também não vislumbrou sinais de qualquer anormalidade e resolveu fazer conversa enquanto o colega contemplava o horizonte, talvez a ganhar coragem para o que ali viera fazer. Reparara, mais pela forma como disse do que propriamente pelo que disse no carro, que o sargento nutria, se não simpatia, pelo menos respeito pelo homem que aguardava imperturbável como a paisagem.



... (continua)


Nota do autor: Este texto é regularmente actualizado, por vezes apenas para alterar uma palavra, uma vírgula. Não sei quando termina. Mas quando for a altura de escrever "Fim", será retirado da internet e sairá de cena, como alguém que morre, depois de um breve período de exposição lutuosa. Provavelmente reencarnando noutro local. Não se sabe.

Nota 2: O autor adere e não adere ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.