Uma Aventura na História. Devaneio infanto-juvenil


I


Assim que os primeiros raios da manhã penetraram pelos buracos da persiana do quarto, ainda mergulhado na penumbra, Pedro saltou da cama sem ponta de preguiça.

Apesar da noite passada quase em branco e da ansiedade, o rapaz não conseguiu conter a excitação e ergueu-se como se estivesse animado por molas, correndo para a indumentária castanha de escoteiro, primorosamente engomada pela mãe na noite anterior e estendida, aprumada, sobre a cadeira. Por baixo, brilhavam as botas de montanhismo em tons verdes, impecáveis, prontas a estrear e há muito cobiçadas a uma montra de artigos de aventura, onde foram comprados a bússola e o cantil também novinhos em folha.

O dia prometia ser em cheio. Seria, aliás, o primeiro de cinco dias em cheio, uma semana que Pedro já planeava havia dois meses. Planeava e aguardava em grande excitação, desde que obtivera o “ok” final dos pais para esta saída de campo do seu agrupamento de escoteiros. A primeira Aventura com a sua Tribo escotista. O facto de ser na vizinha Serra da Boa Viagem, monte sobranceiro à cidade da Figueira da Foz, onde morava, ali perto, portanto, não foi entrave para que a sua imaginação andasse desde o início numa roda-viva, antecipando as mais diversas peripécias e experiências, sensações fortes e novas, um sem fim de aventuras emocionantes.

Ainda por cima, Pedro era escoteiro há poucos tempo, acabara de trocar o lenço amarelo de lobito pelo verde de membro da Tribo e esta seria a sua primeira grande jornada no exterior, longe dos pais e do protetor teto familiar, por mais do que um simples fim de semana.

Uma verdadeira saga para o rapaz, que se começou a desenhar há dois meses na sua cabeça. E aquele momento era, finalmente, o despertar para esse dia tão aguardado! Razão mais do que suficiente para todo este entusiasmo, compreensível naquele corpo franzino mas atlético e enérgico de 11 anos. Pedro, como quase todas as crianças da sua idade, é um miúdo vivo, mas alia a essa vivacidade física uma curiosidade incomum que o leva, muitas vezes, a encerrar-se na bela Biblioteca Municipal da sua cidade, um magnífico edifício debruçado de forma harmoniosa sobre o verde relvado do Parque das Abadias, ali próximo de sua casa. Nessas alturas, embrenhava-se com prazer em longas incursões pela maravilhosa aventura dos livros e durante tardes inteiras esquecia as brincadeiras com os amigos.

A paixão pela leitura deve-se a uma natureza incansavelmente curiosa. Quase tanto como pelo vigor físico, Pedro destaca-se na escola e entre os colegas pelo seu insaciável apetite de aprender. Além de um irresistível fascínio pelos universos paralelos da fantasia e da imaginação, sendo leitor ávido das mirabolantes e engenhosas aventuras de Júlio Verne ou do mundo mágico de Harry Potter. Estava naquela altura a começar a ler o épico O Senhor dos Anéis, cujo volumoso primeiro volume espreitava da mesinha de cabeceira. Em suma: Não é então de surpreender toda esta excitação, que já seria normal em qualquer outro adolescente normal...

Pedro vestiu o uniforme em tempo recorde, calçou as botas sem evitar um sorriso de orgulho vaidoso, abriu a porta para o corredor com um salto, confirmou de soslaio que a mochila permanecia no mesmo sítio, devidamente aparelhada, passou como um furacão pela casa de banho, esfregando as mãos praticamente secas no rosto e passando de raspão com o pente no cabelo e, ala que se faz tarde, abala em direcção ao quarto dos pais, ao fundo do corredor. Abrindo a porta com algum cuidado, apesar da euforia, Pedro caminhou pé ante pé até à cabeceira da cama e disse num sussurro a querer gritar:

- Acordem! Está na hora! 

A mãe despertou primeiro, resmungou algo incompreensível, estendeu o braço com esforço mandrião para fora dos lençóis e começou a tatear na mesinha, à procura do relógio, com o quarto mergulhado na penumbra.

- Oh Pedro, mas que horas são? - Perguntou a mãe, estremunhada e de mau humor.

- Já são horas, vá lá, acorda,.. levanta-te! - Disse o rapaz num tom um bocado mais alto, acordando também o pai, que se começou a levantar e a remoer imprecações, de olhos fechados e quase em câmara lenta.

- Opá, ó Pedro, pelo amor de Deus!... - Exclamou a mãe zangada, a agitar furiosamente o relógio, que marcava ainda cinco e meia da madrugada… – Ainda faltam mais de duas horas! Volta mas é já outra vez para a cama! Estamos cansados e quando for a hora certa eu acordo-te, não te preocupes que a carrinha não se vai embora sem ti. Vai mas é descansar. Ainda vais é passar o dia cheio de sono e perdes o melhor… Vá, vai para a cama outra vez e deixa-me dormir em paz. E tu também podes voltar para a cama, homem, é o miúdo que está com bichos-carpinteiros! … – Disse a mãe virando-se para o outro lado e enxotando o filho com a mão para fora do quarto. Sempre a resmungar, o pai voltou a  enroscar-se nos lençóis.

O Pedro lá regressou, cabisbaixo, para o seu quarto, em pulgas e já a rogar pragas ao tempo e aos ponteiros do relógio, que pareciam andar mais devagar de propósito, só para embirrar com ele! O rapaz aprendeu então por experiência directa e angustiante o conceito de tempo relativo... Sem despir a roupa “de gala”, deitou-se por cima dos cobertores e encostou de lado a cabeça inquieta no travesseiro, fitando fixamente um ponto na parede, de olhos esbugalhados e a luzir no lusco-fusco.

Os segundos davam-lhe a sensação de demorarem horas, a avançar a conta-gotas… parecia uma tortura!

Ao fim de algum tempo, quinze ou vinte minutos, no entanto, o cansaço começou a vencer a impaciência e o Pedro acabou por sucumbir ao doce poder de Morfeu, o antigo e poderoso deus dos sonhos da Antiga Grécia, caindo rapidamente num sono pesado…

II


E foi quase nesse instante, porque o tempo dos sonhos é ainda mais relativo do que o tempo real, que o rapaz, que ainda assim deixara os reflexos em estado de alerta, sentiu os característicos passos matinais, arrastados e preguiçosos, da mãe no corredor.

Levantou a cabeça de imediato. A porta do quarto abriu-se e Pedro ouviu, ainda de olhos fechados mas já com os sentidos bem despertos, as palavras mágicas;

- Pedro, está na hora.

Até que enfim! Apeteceu-lhe gritar. Levantou-se num salto felino e em minutos devorou sem cerimónias o pequeno-almoço preparado na cozinha, de onde saiu em passo aceleradíssimo, pregando um beijo rápido e apressado na bochecha da mãe. À espera, no carro, já estava o pai, ainda com a típica expressão matinal de poucos amigos mas visivelmente feliz pela alegria do filho, que o conduziu ao ponto de encontro com o grupo excursionista. Pelo caminho em direcção a Norte, atravessaram a marginal atlântica em direcção a Buarcos, zona da cidade já no sopé sul da tão ansiada Serra da Boa Viagem, que neste final de Primavera (estamos em meados de Junho) já se mostrava viçosa e bela, com o seu perfil baixo e suave, descendo de encontro ao oceano como um lagarto indolente descansando a cabeça nas ondas, a dominar a paisagem em frente, ainda ao longe, verde apesar de manchada por algumas clareiras de incêndios florestais de anos anteriores e pelo casario cor de laranja e branco, que se espraiava pela encosta abaixo em manchas desgarradas, virada para a cidade a Sul.

Enquanto o carro rodava pela avenida, Pedro, o enérgico explorador, trocava olhares com o mar, que se estendia à esquerda até perder de vista e a imaginação galopava na revolta imensidão turquesa. Antecipando as aventuras que certamente o esperavam: O rappel, os jogos de camuflagem, as caminhadas e as descobertas, a montagem e a organização das tendas e do acampamento, o ar livre e o contacto com a floresta e a natureza, os exercícios de orientação, as noites estreladas à volta da fogueira em convívio... Enfim, tudo se conjugaria para fazer desta uma valente jornada para recordar para a vida. «Vai ser inesquecível!...», pensava o rapaz com a testa encostada ao vidro do carro, absolutamente convicto de que nada poderia falhar. Pedro desviou o olhar do oceano, virou-se de novo de frente para o maciço verdejante e sorriu. Mal sabia ele como tinha razão, como este passeio seria de facto para memorável...

- Não te esqueceste de nada? De certeza?... Então dá cá um beijo, diverte-te e porta-te bem. E cuidado com as feras esfomeadas que andam pela serra, sempre ouvi dizer que andam por lá umas criaturas fabulosas, verdes, e com uns dentes enormes, chamam-se gambuzinos esão muito antigos e…

- Ó pai, já não sou nenhuma criança!...

- ‘Tou a mangar contigo pá! Vá, vai lá e aproveita bem. Obedece aos mais velhos, não te percas do grupo, não andes por lá a perseguir as escuteiras que isso é assédio e dá cadeia e… o que é que era mais? Ah, e não andes por lá a cirandar sozinho à noite pela floresta, porque dizem que ainda por lá andam os espíritos de gente morta, ainda mais antiga do que os gambuzinos.

- Ó pá!!!

Dados os últimos conselhos e recomendações, o pai lá abandonou o rapaz aos cuidados do grupo escutista, vendo-o correr, todo contente, em direção a um dos líderes. Para o rapaz, e o pai entendia-o bem, aquela primeira saída de campo «a sério», constituía quase como um rito de“passagem”, de transição, na sua vida, para um degrau mais elevado de maturidade e autonomia. Também nesse sentido iria marcá-lo. Mas iria marcá-lo em muitos outros sentidos. Em sentidos que nem no seu sonho mais delirante o Pedro poderia ter previsto…

III

Depois de cumpridos os inevitáveis preparativos, de esperarem pelos eternos retardatários e de uma breve preleção por um dos mais velhos, a viagem coletiva até ao local do acampamento foi desde logo uma animação, como seria de esperar num autocarro cheio de jovens excitadíssimos. A sinuosa estrada alcatroada subindo a encosta do Cabo Mondego, varanda para uma vista deslumbrante do mar e da baia da Figueira da Foz, transformou-se pouco depois, ao penetrarem na mata no topo da serra, em caminho de terra batida ladeado de espessa vegetação. Num instante, e após uma curta caminhada – a Pedro assim pareceu, pelo menos, tamanho era o entusiasmo que reinava entre o grupo de cerca de três dezenas de rapazes e raparigas de várias idades – pararam por fim num pequeno descampado rodeado de frondosas acácias e imponentes eucaliptos e pinheiros, que tornavam mais fresco e acolhedor todo o perímetro.

O primeiro dia foi preenchido quase integralmente, sem surpresas, com o planeamento do terreno, o levantar de tendas e estruturas de apoio, tarefas e outras obrigações escutistas. Sem dar sinais de cansaço, com alegria mas disciplinadamente, montaram o acampamento e familiarizaram-se com o terreno envolvente. Naquela azáfama, o tempo acabou por passar depressa para todos, mas sobretudo para o Pedro, que não perdia pitada e se voluntariava para tudo e mais alguma coisa. Nessa noite, poucos minutos ficou a dever ao fino travesseiro de campanha, adormecendo rapidamente como uma pedra, extenuado e feliz, graças ao cansaço e ao sono em atraso, enquanto os outros, sobretudo os mais velhos, continuaram noite fora num festivo serão à volta da fogueira. Pedro adormeceu assim embalado pelo delicioso desconforto do campismo selvagem…

As atividades de campo, propriamente ditas, iniciaram-se apenas ao segundo dia e as expectativas do Pedro e do seu grupo não saíram goradas. O programa incluía neste dia uma caminhada de reconhecimento da serra, com passagem por alguns dos seus pontos mais belos e emblemáticos, como a zona do miradouro do alto da Bandeira, que a todos deixou de boca aberta, com a vastidão e a beleza do panorama, o verde das matas de Quiaios de um lado e o azul mar imenso do outro. Duas planícies paralelas até ao fio do horizonte para norte.

Fascinados com tudo e mais alguma coisa que se lhes oferecesse ao caminho, os mais novos iam ouvindo com sofreguidão as palavras e os gestos dos chefes e estabelecendo, mesmo sem o perceber, por vezes, uma empatia especial com a floresta, a serra, os seus mistérios e “manhas”. Pedro, por exemplo, seguia atentíssimo as explicações e as histórias, olhando para tudo em redor com a máxima atenção e procurando verdadeiramente descobrir um mundo diferente daquele a que estava familiarizado, o da cidade: O mundo da natureza, do meio ambiente, do património vital que nos rodeia e sustenta. Deixou-os a todos tristes saber que quase toda a mata da serra da Boa Viagem, bem mais esplendorosa num passado recente, foi devorada pelas labaredas em vários incêndios, sobretudo os de 1993 e o de 2004, e que a serra e a sua biodiversidade (as diferentes formas de vida numa dada zona) ainda estavam a recuperar dessa tragédia. Mas pela aprendizagem, pelo convívio e pelo exercício, o longo passeio estava a ser, sem dúvida, proveitoso.

IV

Foi já perto do final da tarde que o grupo encetou o regresso à “base”. Do ponto onde se encontravam, podiam ver o maravilhoso espetáculo de um imenso sol alaranjado a mergulhar lentamente na vastidão cintilante do Atlântico lá em baixo. O vento já começava a soprar fresco e um pouco forte, à medida que a tarde se tornava crepúsculo. Foi nesta ocasião, já próximo do acampamento, que se deu, enfim, o surpreendente início da verdadeira aventura do Pedro, que se desviara uns metros da fileira indiana para aliviar a bexiga.

De volta ao grupo, resolveu fazer um pequeno atalho, contornando o trilho por detrás de um pequeno matagal de cedros-do-bussaco. De súbito, e quando atravessava uma vereda coberta de folhagem, surge à sua frente, e sem que pudesse evitar entrar nela, uma espécie de penumbra carregada de eletricidade ou um espelho azulado e ondulante. Com o balanço da corrida, o rapaz penetrou naquele portal, sentindo-se como que a pairar, imóvel, entre dois mundos, por breves segundos. Até que, tão rapidamente quanto tinha surgido, a penumbra simplesmente desapareceu e Pedro quase se estatelou no chão ao sair daquele estranho estado de suspensão.

Atónito, o jovem sentou-se numa pedra e procedeu a uma inspeção rápida e aflita pelo corpo, apalpando-se e olhando-se preocupado, como se tivesse medo de que alguma parte da sua anatomia pudesse ter ficado pelo caminho…

Ainda um pouco atordoado, levantou a cabeça e começou a olhar em volta, como que hipnotizado, pasmado pela diferença que via, ouvia e sentia em tudo ao seu redor, mas que ainda não conseguia perceber bem. Algo de muito errado se passava, mas não era evidente. Aos poucos, e com um ar cada vez mais surpreendido, lá foi identificando algumas discrepâncias inexplicáveis. O cenário, as árvores, a vegetação, o relevo do terreno, tudo estava completamente diferente, afinal! Os altos eucaliptos tinham desaparecido, tal como os pinheiros e as acácias. O pequeno matagal de cedros dera lugar a um cerrado de arbustos altos, com o que pareciam ser folhas enormes, largas e recortadas, tal como as flores mais rasteiras, mais coloridas e diferentes de tudo o que Pedro conhecia dos livros de ciência ou dos ensinamentos colhidos durante todo aquele dia na caminhada pela serra que, toda ela, até os sons que produz, lhe parecia agora outra qualquer menos a da Boa Viagem. E no entanto…

No entanto, Pedro, que já se levantara e começara a andar com cautela redobrada, olhando para todos os lados com os olhos muito abertos, de músculos tensos e prontos a saltar ao mínimo sinal de perigo, como que sentia que não mudara, realmente, de sítio. Não sabia o que tinha acontecido, mas tinha a viva e bizarra impressão de que aquela era, de facto, a serra da Boa Viagem. E que aquele era, realmente, o local onde estava há minutos atrás com os seus companheiros escuteiros!...

Sem qualquer explicação para aquele extraordinário acontecimento, seguiu na direção de onde pensava estar o trilho que acabara de deixar para fazer as necessidades, voltando para a direita. Mas cedo percebeu que o trilho deixara de existir, constituindo tudo à sua volta mata quase cerrada e exótica que não lhe permitia ver a paisagem, como acontecia há uns minutos atrás, quando a floresta era mais esparsa e familiar… Sem perder o ânimo, o nosso pequeno herói meteu pés a caminho para Sul, no sentido do acampamento e, em último caso, da cidade, conduzido pelo instinto e pelas regras de orientação que aprendeu enquanto escuteiro e que tão úteis agora se revelavam, como o facto do musgo crescer, regra geral, no lado das árvores virado para Norte. Apesar disso, o rosto tenso e aflito do rapaz não escondia o receio enquanto caminhava a corta-mato, segurando com firmeza redobrada a sua vara improvisada, com que ia procurando abrir caminho e, com a outra mão, apertando o canivete que trazia no bolso, pronto para qualquer eventualidade…

De súbito e sem que surgisse ainda qualquer vestígio da clareira do acampamento, Pedro nota um resfolhar na vegetação uns metros para o seu lado esquerdo e ouve distintamente um ruído de algo a mover-se rapidamente na sua direção. Com o corpo tenso em estado de alerta máximo, deu um pulo virando-se naquele sentido, levantou a vara e ergueu-a virada para a frente, segura com as duas mãos, esquecendo a navalha na algibeira dos calções. De joelhos fléctidos e trémulos, Pedro viu com terror o mato a abrir-se e a agitar-se à medida que algo se aproximava em grande velocidade na sua direção! Como numa explosão, saindo da vegetação densa com um guincho arrepiante, saltou-lhe para a barriga uma criatura vagamente parecida com um leitão, mas muito mais peludo e escuro, mais forte e com dentes mais salientes.

- AAAAIIIII! Gritou o rapaz, que largara logo a vara com o susto.

Com o impacto e a surpresa, caiu para trás desamparado, levantando a cabeça a tempo de ver o pequeno javali (ou o que parecia ser uma cria de javali…) com o pelo negro hirsuto e grosso e presas maiores do que as habituais, a fugir esbaforido noutra direção, também aturdido com aquele insólito encontro imediato! «Um javali na serra da Boa Viagem!!!», pensou o rapaz atónito enquanto se levantava e recompunha da surpresa.

Passado o espanto inicial, Pedro logo percebeu que não havia perigo imediato e não evitou largar uma gargalhada perante o insólito do ocorrido, como que libertando a tensão nervosa. Não compreendia o que se passava, mas sabia que não era nada boa ideia ficar por ali muito tempo: Atrás de uma cria vem sempre um pai ou uma mãe com pouca vontade de fazer amigos… Assim, sacudiu a poeira e o cascalho e fez-se de novo ao caminho, desta vez mais depressa, com a cabeça em polvorosa a tentar perceber o que lhe tinha acontecido. Aliás, o que lhe estava a acontecer... Onde foram parar os seus amigos? O que era aquela cortina de energia que o tinha transportado para este local tão estranho? Que sítio era este? Que perigos esconde esta mata? E que pássaros esquisitos são estes, tão grandes e estridentes? As perguntas atropelavam-se na sua mente, ainda a tentar assimilar toda aquela informação inédita, procurando encontrar pontos em comum, pontes com a realidade que lhe era familiar, segura e confortável. Pedro deu-se, subitamente, também conta que todo o ruído envolvente era diferente, muito mais abundante e diversificado. Além da cacofonia de aves em muito maior quantidade e variedade, quando achou que a distância relativamente à família do pequeno javali já era suficiente e segura, tentou concentrar-se nos sons da floresta, conseguindo distinguir, mesmo que vindos de relativamente longe, urros, por certo de animais de grande porte, chilreios de pássaros desconhecidos e qualquer coisa parecida com uivos, que normalmente não fariam parte da banda sonora da serra da Boa Viagem que ele conhecia. Ou pensava conhecer…


V


Com o deslumbre e a adrenalina do desconhecido, o rapaz até se esquecia dos perigos e maravilhava-se com aquela sinfonia desafinada de sons bizarros, de uma natureza muito mais abundante do que a da mata que existia até há momentos atrás… Pelo menos na memória de Pedro, que abre igualmente a boca pasmado com as árvores, bem distintas das que conhecia. Aliás, como num passe de mágica, toda a paisagem envolvente se tinha radicalmente alterado, sobretudo a vegetação e o arvoredo.

Desde logo tinham desaparecido os eucaliptos e os pinheiros, substituídos por árvores frondosas mas mais baixas e de tronco grosso, que faziam lembrar a Pedro os possantes castanheiros ou carvalhos que vira somente em livros de biologia, além do que pareciam ser palmeiras enormes.

E eis que, quando o sol já quase mergulhara por completo no oceano, antecipando o anoitecer, o jovem escoteiro começa a distinguir, algumas dezenas de metros adiante, um barulho diferente de todos os outros, que tudo indicava ser de origem humana. À medida que se aproximava, cauteloso e meio agachado, do que parecia ser a clareira do acampamento, ou pelo menos uma clareira maior, Pedro percebeu uma grande agitação, sobretudo de troncos e ramagens arrastadas e agitadas e, pelo meio, rumores de vozes, muitas vozes, que se tornavam cada vez mais nítidas. Vozes de gente, muita gente…

Já a rastejar quase com a barriga colada ao solo e nunca deixando de segurar a vara com força, Pedro chegou até à beira de uma grande área livre de arvoredo, escondendo-se atrás de uma saliência no terreno, de onde podia espreitar sem ser visto, por detrás de um arbusto. Esticou o pescoço, e aquilo que viu superou em muito o choque com o pequeno porco selvagem.

Com a boca aberta de espanto, Pedro contemplava um grupo de cerca de três dezenas de homens, todos mais baixos e magros que o normal, apesar das compleições possantes e musculadas, mais morenos e com os cabelos em completo desalinho. Além de estarem completamente nus! Sem grandes conversas, além de frases ou palavras soltas e incompreensíveis, todos colaboravam no que pareciam ser os preparativos para uma celebração de qualquer espécie, atarefados limpando o chão de pedras e galhos ou amontoando lenha numa pilha gigantesca ao centro da enorme clareira (que Pedro já definitivamente percebera que não tinha nada a ver com a clareira do acampamento…), a cerca de cinquenta metros de uma estrutura que ainda deixou o rapaz mais boquiaberto.

Erguendo-se sobranceiro na orla da clareira, surgia por seu turno um verdadeiro monumento de enormes blocos de pedra lisa e escura, que formavam um pequeno mas impressionante edifício com perto de três metros de altura, e que parecia constituir o centro nevrálgico das actividades daquela gente, que preparava igualmente, na área fronteira à entrada do edifício megalítico (expressão latina: mega = grande; litos = pedra), um género de alameda desenhada no solo com rochas mais pequenas, até próximo do grande monte de lenha. A grande estrutura era composta por uma pequena galeria ladeada por enormes lajes dispostas na vertical, que davam passagem até à
câmara principal, coberta por outra laje plana, por sua vez sustentada por quatro ou cinco blocos na vertical.

Pedro já tinha visto estas construções. Conhecia-as dos livros de História como monumentos do megalitismo; sabia que remontavam à Pré-História (período inicial da humanidade, antes da escrita), por alturas do Paleolítico, fase da nossa evolução que durou muitas centenas de séculos e terminou há cerca de dez mil anos atrás, com a chegada do Neolítico, que trouxe a sedentarização e a agricultura, entre outros avanços tecnológicos. Essa era daquelas lições que Pedro bem conhecia, e que nem precisava de escola. Se já era ávido de interesse pelo passado em geral, mais o fascinavam esses períodos longínquos da História, os povos primitivos ou, mais distante ainda, a terra há milhões de anos e o longo período dos dinossáurios, muito antes do homem.

Por isso lhe eram tão “familiares” aquelas pedras altivas, primorosamente alinhadas e encaixadas, aquelas personagens, aquelas fisionomias rudes e escuras, cobertas do que pareciam ser tatuagens ou pinturas, mas em tudo semelhantes ao homem moderno, com as mesmas feições, uma postura perfeitamente vertical e um comportamento naturalmente social. A linguagem não lhes era desconhecida, exprimiam-se num dialecto estranho e gutural, mas pareceu a Pedro que não necessitavam de comunicar tanto por essa forma. O choque, para ele, era vê-los ao vivo! E o monumento, tão diferente do amontoado de ruínas que vira na fotografia da enciclopédia…

Dá-se, então, conta de que foi parar de qualquer modo, ao passado! A um passado remoto cuja data ainda não conseguia determinar. Por qualquer inexplicável fenómeno, Pedro aterrara em plena antiguidade! E ao que tudo indicava, na Pré-História! Desafiara as leis da física, do tempo e do espaço e fora atirado para uns milhares de anos atrás! No que, apesar das discrepâncias, parecia ser o mesmo sítio, a serra da Boa Viagem, mas séculos antes de Cristo!

O rapaz, pelo que estudara e do que tinha observado, estimava ter “aterrado” precisamente por alturas do Neolítico, talvez no final desta fase da História. Pedro reparou, por exemplo, nas lanças com pontas de pedra lisa e afiada, nos machados com os gumes, também de pedra, muito bem polidos, bem encastoados nos cabos de madeira, alguns deles trabalhados com incisões, ou nuns pequenos punhais de osso, preciosamente talhados. Com o seu olho de lince e memória enciclopédica, notou que não possuíam ainda utensílios de metal, e que mesmo os enfeites pessoais, como colares ou uma espécie de extensões no cabelo, eram compostos simplesmente por
pedaços do que parecia ser osso, madeira esculpida, conchas ou pequenas pedras lapidadas. Sem dúvida, pelas suas contas, e se o medo e a adrenalina não lhe turvavam a memória das lições e dos livros de História, fora cair em plena Antiguidade, calculava que por volta de dois mil anos Antes de Cristo!


... (continua)


Nota do autor: Este texto é regularmente actualizado, por vezes apenas para alterar uma palavra, uma vírgula. Não sei quando termina. Mas quando for a altura de escrever "Fim", será retirado da internet e sairá de cena, como alguém que morre, depois de um breve período de exposição lutuosa. Provavelmente reencarnando noutro local. Não se sabe.

Nota 2: O autor adere e não adere ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.