Uma Aventura na História. Devaneio infanto-juvenil
I
Assim que os primeiros raios da manhã penetraram pelos buracos da persiana do quarto, ainda mergulhado na penumbra, Pedro saltou da cama sem ponta de preguiça.
Apesar da noite passada quase em branco e da ansiedade, o rapaz não conseguiu conter a excitação e ergueu-se como se estivesse animado por molas, correndo para a indumentária castanha de escoteiro, primorosamente engomada pela mãe na noite anterior e estendida, aprumada, sobre a cadeira. Por baixo, brilhavam as botas de montanhismo em tons verdes, impecáveis, prontas a estrear e há muito cobiçadas a uma montra de artigos de aventura, onde foram comprados a bússola e o cantil também novinhos em folha.
O dia prometia ser em cheio. Seria, aliás, o primeiro de cinco dias em cheio, uma semana que Pedro já planeava havia dois meses. Planeava e aguardava em grande excitação, desde que obtivera o “ok” final dos pais para esta saída de campo do seu agrupamento de escoteiros. A primeira Aventura com a sua Tribo escotista. O facto de ser na vizinha Serra da Boa Viagem, monte sobranceiro à cidade da Figueira da Foz, onde morava, ali perto, portanto, não foi entrave para que a sua imaginação andasse desde o início numa roda-viva, antecipando as mais diversas peripécias e experiências, sensações fortes e novas, um sem fim de aventuras emocionantes.
Ainda por cima, Pedro era escoteiro há poucos tempo, acabara de trocar o lenço amarelo de lobito pelo verde de membro da Tribo e esta seria a sua primeira grande jornada no exterior, longe dos pais e do protetor teto familiar, por mais do que um simples fim de semana.
Uma verdadeira saga para o rapaz, que se começou a desenhar há dois meses na sua cabeça. E aquele momento era, finalmente, o despertar para esse dia tão aguardado! Razão mais do que suficiente para todo este entusiasmo, compreensível naquele corpo franzino mas atlético e enérgico de 11 anos. Pedro, como quase todas as crianças da sua idade, é um miúdo vivo, mas alia a essa vivacidade física uma curiosidade incomum que o leva, muitas vezes, a encerrar-se na bela Biblioteca Municipal da sua cidade, um magnífico edifício debruçado de forma harmoniosa sobre o verde relvado do Parque das Abadias, ali próximo de sua casa. Nessas alturas, embrenhava-se com prazer em longas incursões pela maravilhosa aventura dos livros e durante tardes inteiras esquecia as brincadeiras com os amigos.
A paixão pela leitura deve-se a uma natureza incansavelmente curiosa. Quase tanto como pelo vigor físico, Pedro destaca-se na escola e entre os colegas pelo seu insaciável apetite de aprender. Além de um irresistível fascínio pelos universos paralelos da fantasia e da imaginação, sendo leitor ávido das mirabolantes e engenhosas aventuras de Júlio Verne ou do mundo mágico de Harry Potter. Estava naquela altura a começar a ler o épico O Senhor dos Anéis, cujo volumoso primeiro volume espreitava da mesinha de cabeceira. Em suma: Não é então de surpreender toda esta excitação, que já seria normal em qualquer outro adolescente normal...
Pedro vestiu o uniforme em tempo recorde, calçou as botas sem evitar um sorriso de orgulho vaidoso, abriu a porta para o corredor com um salto, confirmou de soslaio que a mochila permanecia no mesmo sítio, devidamente aparelhada, passou como um furacão pela casa de banho, esfregando as mãos praticamente secas no rosto e passando de raspão com o pente no cabelo e, ala que se faz tarde, abala em direcção ao quarto dos pais, ao fundo do corredor. Abrindo a porta com algum cuidado, apesar da euforia, Pedro caminhou pé ante pé até à cabeceira da cama e disse num sussurro a querer gritar:
- Acordem! Está na hora!
A mãe despertou primeiro, resmungou algo incompreensível, estendeu o braço com esforço mandrião para fora dos lençóis e começou a tatear na mesinha, à procura do relógio, com o quarto mergulhado na penumbra.
- Oh Pedro, mas que horas são? - Perguntou a mãe, estremunhada e de mau humor.
- Já são horas, vá lá, acorda,.. levanta-te! - Disse o rapaz num tom um bocado mais alto, acordando também o pai, que se começou a levantar e a remoer imprecações, de olhos fechados e quase em câmara lenta.
- Opá, ó Pedro, pelo amor de Deus!... - Exclamou a mãe zangada, a agitar furiosamente o relógio, que marcava ainda cinco e meia da madrugada… – Ainda faltam mais de duas horas! Volta mas é já outra vez para a cama! Estamos cansados e quando for a hora certa eu acordo-te, não te preocupes que a carrinha não se vai embora sem ti. Vai mas é descansar. Ainda vais é passar o dia cheio de sono e perdes o melhor… Vá, vai para a cama outra vez e deixa-me dormir em paz. E tu também podes voltar para a cama, homem, é o miúdo que está com bichos-carpinteiros! … – Disse a mãe virando-se para o outro lado e enxotando o filho com a mão para fora do quarto. Sempre a resmungar, o pai voltou a enroscar-se nos lençóis.
O Pedro lá regressou, cabisbaixo, para o seu quarto, em pulgas e já a rogar pragas ao tempo e aos ponteiros do relógio, que pareciam andar mais devagar de propósito, só para embirrar com ele! O rapaz aprendeu então por experiência directa e angustiante o conceito de tempo relativo... Sem despir a roupa “de gala”, deitou-se por cima dos cobertores e encostou de lado a cabeça inquieta no travesseiro, fitando fixamente um ponto na parede, de olhos esbugalhados e a luzir no lusco-fusco.
Os segundos davam-lhe a sensação de demorarem horas, a avançar a conta-gotas… parecia uma tortura!
Ao fim de algum tempo, quinze ou vinte minutos, no entanto, o cansaço começou a vencer a impaciência e o Pedro acabou por sucumbir ao doce poder de Morfeu, o antigo e poderoso deus dos sonhos da Antiga Grécia, caindo rapidamente num sono pesado…
II
E foi quase nesse instante, porque o tempo dos sonhos é ainda mais relativo do que o tempo real, que o rapaz, que ainda assim deixara os reflexos em estado de alerta, sentiu os característicos passos matinais, arrastados e preguiçosos, da mãe no corredor.
Levantou a cabeça de imediato. A porta do quarto abriu-se e Pedro ouviu, ainda de olhos fechados mas já com os sentidos bem despertos, as palavras mágicas;
- Pedro, está na hora.
Até que enfim! Apeteceu-lhe gritar. Levantou-se num salto felino e em minutos devorou sem cerimónias o pequeno-almoço preparado na cozinha, de onde saiu em passo aceleradíssimo, pregando um beijo rápido e apressado na bochecha da mãe. À espera, no carro, já estava o pai, ainda com a típica expressão matinal de poucos amigos mas visivelmente feliz pela alegria do filho, que o conduziu ao ponto de encontro com o grupo excursionista. Pelo caminho em direcção a Norte, atravessaram a marginal atlântica em direcção a Buarcos, zona da cidade já no sopé sul da tão ansiada Serra da Boa Viagem, que neste final de Primavera (estamos em meados de Junho) já se mostrava viçosa e bela, com o seu perfil baixo e suave, descendo de encontro ao oceano como um lagarto indolente descansando a cabeça nas ondas, a dominar a paisagem em frente, ainda ao longe, verde apesar de manchada por algumas clareiras de incêndios florestais de anos anteriores e pelo casario cor de laranja e branco, que se espraiava pela encosta abaixo em manchas desgarradas, virada para a cidade a Sul.
Enquanto o carro rodava pela avenida, Pedro, o enérgico explorador, trocava olhares com o mar, que se estendia à esquerda até perder de vista e a imaginação galopava na revolta imensidão turquesa. Antecipando as aventuras que certamente o esperavam: O rappel, os jogos de camuflagem, as caminhadas e as descobertas, a montagem e a organização das tendas e do acampamento, o ar livre e o contacto com a floresta e a natureza, os exercícios de orientação, as noites estreladas à volta da fogueira em convívio... Enfim, tudo se conjugaria para fazer desta uma valente jornada para recordar para a vida. «Vai ser inesquecível!...», pensava o rapaz com a testa encostada ao vidro do carro, absolutamente convicto de que nada poderia falhar. Pedro desviou o olhar do oceano, virou-se de novo de frente para o maciço verdejante e sorriu. Mal sabia ele como tinha razão, como este passeio seria de facto para memorável...
Foi já perto do final da tarde que o grupo encetou o regresso à “base”. Do ponto onde se encontravam, podiam ver o maravilhoso espetáculo de um imenso sol alaranjado a mergulhar lentamente na vastidão cintilante do Atlântico lá em baixo. O vento já começava a soprar fresco e um pouco forte, à medida que a tarde se tornava crepúsculo. Foi nesta ocasião, já próximo do acampamento, que se deu, enfim, o surpreendente início da verdadeira aventura do Pedro, que se desviara uns metros da fileira indiana para aliviar a bexiga.
V
Com o deslumbre e a adrenalina do desconhecido, o rapaz até se esquecia dos perigos e maravilhava-se com aquela sinfonia desafinada de sons bizarros, de uma natureza muito mais abundante do que a da mata que existia até há momentos atrás… Pelo menos na memória de Pedro, que abre igualmente a boca pasmado com as árvores, bem distintas das que conhecia. Aliás, como num passe de mágica, toda a paisagem envolvente se tinha radicalmente alterado, sobretudo a vegetação e o arvoredo.
Desde logo tinham desaparecido os eucaliptos e os pinheiros, substituídos por árvores frondosas mas mais baixas e de tronco grosso, que faziam lembrar a Pedro os possantes castanheiros ou carvalhos que vira somente em livros de biologia, além do que pareciam ser palmeiras enormes.
E eis que, quando o sol já quase mergulhara por completo no oceano, antecipando o anoitecer, o jovem escoteiro começa a distinguir, algumas dezenas de metros adiante, um barulho diferente de todos os outros, que tudo indicava ser de origem humana. À medida que se aproximava, cauteloso e meio agachado, do que parecia ser a clareira do acampamento, ou pelo menos uma clareira maior, Pedro percebeu uma grande agitação, sobretudo de troncos e ramagens arrastadas e agitadas e, pelo meio, rumores de vozes, muitas vozes, que se tornavam cada vez mais nítidas. Vozes de gente, muita gente…
Já a rastejar quase com a barriga colada ao solo e nunca deixando de segurar a vara com força, Pedro chegou até à beira de uma grande área livre de arvoredo, escondendo-se atrás de uma saliência no terreno, de onde podia espreitar sem ser visto, por detrás de um arbusto. Esticou o pescoço, e aquilo que viu superou em muito o choque com o pequeno porco selvagem.
Com a boca aberta de espanto, Pedro contemplava um grupo de cerca de três dezenas de homens, todos mais baixos e magros que o normal, apesar das compleições possantes e musculadas, mais morenos e com os cabelos em completo desalinho. Além de estarem completamente nus! Sem grandes conversas, além de frases ou palavras soltas e incompreensíveis, todos colaboravam no que pareciam ser os preparativos para uma celebração de qualquer espécie, atarefados limpando o chão de pedras e galhos ou amontoando lenha numa pilha gigantesca ao centro da enorme clareira (que Pedro já definitivamente percebera que não tinha nada a ver com a clareira do acampamento…), a cerca de cinquenta metros de uma estrutura que ainda deixou o rapaz mais boquiaberto.
Erguendo-se sobranceiro na orla da clareira, surgia por seu turno um verdadeiro monumento de enormes blocos de pedra lisa e escura, que formavam um pequeno mas impressionante edifício com perto de três metros de altura, e que parecia constituir o centro nevrálgico das actividades daquela gente, que preparava igualmente, na área fronteira à entrada do edifício megalítico (expressão latina: mega = grande; litos = pedra), um género de alameda desenhada no solo com rochas mais pequenas, até próximo do grande monte de lenha. A grande estrutura era composta por uma pequena galeria ladeada por enormes lajes dispostas na vertical, que davam passagem até à
câmara principal, coberta por outra laje plana, por sua vez sustentada por quatro ou cinco blocos na vertical.
Pedro já tinha visto estas construções. Conhecia-as dos livros de História como monumentos do megalitismo; sabia que remontavam à Pré-História (período inicial da humanidade, antes da escrita), por alturas do Paleolítico, fase da nossa evolução que durou muitas centenas de séculos e terminou há cerca de dez mil anos atrás, com a chegada do Neolítico, que trouxe a sedentarização e a agricultura, entre outros avanços tecnológicos. Essa era daquelas lições que Pedro bem conhecia, e que nem precisava de escola. Se já era ávido de interesse pelo passado em geral, mais o fascinavam esses períodos longínquos da História, os povos primitivos ou, mais distante ainda, a terra há milhões de anos e o longo período dos dinossáurios, muito antes do homem.
Por isso lhe eram tão “familiares” aquelas pedras altivas, primorosamente alinhadas e encaixadas, aquelas personagens, aquelas fisionomias rudes e escuras, cobertas do que pareciam ser tatuagens ou pinturas, mas em tudo semelhantes ao homem moderno, com as mesmas feições, uma postura perfeitamente vertical e um comportamento naturalmente social. A linguagem não lhes era desconhecida, exprimiam-se num dialecto estranho e gutural, mas pareceu a Pedro que não necessitavam de comunicar tanto por essa forma. O choque, para ele, era vê-los ao vivo! E o monumento, tão diferente do amontoado de ruínas que vira na fotografia da enciclopédia…
Dá-se, então, conta de que foi parar de qualquer modo, ao passado! A um passado remoto cuja data ainda não conseguia determinar. Por qualquer inexplicável fenómeno, Pedro aterrara em plena antiguidade! E ao que tudo indicava, na Pré-História! Desafiara as leis da física, do tempo e do espaço e fora atirado para uns milhares de anos atrás! No que, apesar das discrepâncias, parecia ser o mesmo sítio, a serra da Boa Viagem, mas séculos antes de Cristo!
O rapaz, pelo que estudara e do que tinha observado, estimava ter “aterrado” precisamente por alturas do Neolítico, talvez no final desta fase da História. Pedro reparou, por exemplo, nas lanças com pontas de pedra lisa e afiada, nos machados com os gumes, também de pedra, muito bem polidos, bem encastoados nos cabos de madeira, alguns deles trabalhados com incisões, ou nuns pequenos punhais de osso, preciosamente talhados. Com o seu olho de lince e memória enciclopédica, notou que não possuíam ainda utensílios de metal, e que mesmo os enfeites pessoais, como colares ou uma espécie de extensões no cabelo, eram compostos simplesmente por
pedaços do que parecia ser osso, madeira esculpida, conchas ou pequenas pedras lapidadas. Sem dúvida, pelas suas contas, e se o medo e a adrenalina não lhe turvavam a memória das lições e dos livros de História, fora cair em plena Antiguidade, calculava que por volta de dois mil anos Antes de Cristo!
... (continua)
Nota do autor: Este texto é regularmente actualizado, por vezes apenas para alterar uma palavra, uma vírgula. Não sei quando termina. Mas quando for a altura de escrever "Fim", será retirado da internet e sairá de cena, como alguém que morre, depois de um breve período de exposição lutuosa. Provavelmente reencarnando noutro local. Não se sabe.
Nota 2: O autor adere e não adere ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.